Feministas são bacanas!

“Você é feminista?” é uma pergunta incômoda, como tenho constatado nos últimos dez anos em que passei a me dedicar a escrever sobre gênero. Há uma grande quantidade de mulheres emancipadas, usufruindo de todos direitos conquistados pelo movimento feminista ao longo do século XX, que concorda com os ideais de emancipação e assim mesmo manifesta desconforto em se declarar feminista. Certa vez, numa entrevista, obtive da humorista argentina Maitena uma boa explicação para esse mal estar: “O termo feminismo foi muito degradado ultimamente, mas não gosto de dizer que não sou feminista, por que acredito que se não fosse pelo trabalho que este movimento realizou nos últimos cem anos, ainda estaríamos todas passando roupa”.
Foi do humor da Maitena que lembrei quando constatei que, à pergunta semelhante (você se considera feminista?), 31% das mulheres consultadas responderam que sim, como indica a pesquisa “Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados” realizada pelo SESC. Há 10 anos, a mesma pesquisa recolheu apenas 21% de respostas positivas. Na pergunta “você não é feminista”, 68% responderam não, contra 79% que já haviam negado qualquer identificação com o feminismo na pesquisa de 10 anos atrás.
O avanço desses números faz pensar: afinal, no que significa declarar-se feminista hoje?
Chama a atenção entre os resultados os aspectos positivos associados ao feminismo: lutar por direitos iguais (mulheres, 27%, homens, 22%), defender mulheres livres e independentes (mulheres, 26%, homens, 21%), alcançar igualdade no mercado de trabalho (mulheres, 7%, homens, 5%) e ter auto-valorização e respeito. Ou seja, para além do debate sobre as identidades de gênero e, sobretudo, independentemente do que diga o movimento feminista institucionalizado em organizações não-governamentais, fundos sociais ou organismos de governo, as conquistas registradas para as mulheres nos últimos 50 anos ganharam o reconhecimento público.
A emancipação feminina, percebida pelo historiador Eric Hobsbawm como a maior das revoluções do século passado, ganhou as ruas e a aceitação de mulheres de todos os graus de escolaridade, níveis de escolarização e faixas etárias, ainda que se registrem oscilações: a maior quantidade de respostas positivas para a pergunta “você se considera feminista” foi entre as jovens de 15 a 17 anos, mostrando uma renovação da causa para além da geração que foi para as ruas queimar sutiãs nos anos 1970, na chamada segunda onda do feminismo no Brasil (por aqui, essa história começa em 1975, quando um grupo de mulheres cariocas fundou o Centro da Mulher Brasileira, primeira organização feminista no país).
A adesão juventude é o mais contraditório sinal emitido pelo resultado da pesquisa. Por um lado, mostra a atualidade do feminismo. Por outro, faz pensar que, se há tanta adesão, esta se dá por conta das discriminações pelas quais são submetidas as mulheres todos os dias. Se compararmos, por exemplo, como o movimento sufragista, podemos pensar que este acabou porque, com a conquista do voto, acabaram as razões de luta.
Não é o caso do feminismo, definido pela filósofa francesa Françoise Collin como “um movimento plural, sem hierarquia, dogmas, controle ou estruturas centralizadas, que não defende uma verdade, mas está em permanente processo de construção de uma agenda que evolui e se modifica”. Ou seja, ninguém precisa de carteirinha para entrar no clube feminista ou para ser a favor da liberação das mulheres, estimulando a adesão à causa independentemente de qualquer tipo de filiação a formas organizadas de militância.
Questão de sobrevivência
Desempregadas (35%), mulheres com renda até um salário mínimo (35%), e empregadas no mercado formal (33%) são os grupos em que há maior percentual de respostas afirmativas sobre se considerar feministas. O que pode ser explicado pelo grau de desigualdade persistente no mercado de trabalho e no acesso à renda. Em todos os países capitalistas desenvolvidos, a maioria dos empregos de tempo parcial é de mulheres. Nos países em desenvolvimento, elas também são maioria nas atividades informais e, em todos os países do mundo, as mulheres ocupam postos de trabalho mais precários ou de vínculo mais frágil do que os homens.
No Brasil, diferentes pesquisas apontam para o mesmo cenário: embora elas tenham maior escolaridade, os rendimentos das mulheres são menores que os dos homens, mesmo quando elas ocupam cargos de maior prestígio. Apesar de a participação relativa das mulheres no contingente de formados ter aumentado em praticamente todos os cursos universitários, a diferença salarial em relação aos homens caiu pouco. Indicadores do IBGE mostram que as mulheres são maioria nas faixas salariais mais baixas e minoria nas mais altas, posições que se mantêm inalteradas há pelo menos duas décadas. Ser feminista, no Brasil, ainda é condição sobrevivência.
Machistas são os outros
Ao contrário do que gostariam as vozes conservadoras, tão bem identificadas por Susan Faludi no seu Backlash, ser feminista na primeira década do século XXI continua sendo uma bandeira que, como mostra a pesquisa, começa a ser empunhada também pelos homens: 39% dos entrevistados afirmaram serem profeministas, mais do que os 29% que se declararam antifeministas. Como é a primeira vez que a pesquisa inclui o sexo masculino no seu universo, não se sabe o que eles diriam há 10 anos, mas das respostas se constata que a rejeição dos homens já não é majoritária.
Mais intrigantes são as respostas masculinas a respeito do machismo da sociedade brasileira: 90% deles reconhecem que existe machismo, mas apenas 22% se consideram machistas. A que atribuir a discrepância nos resultados? Se a sociedade brasileira é machista, e apenas 22% dos homens se admitem como tal, o que nos faz um país tão desigual em termos de gênero? Algumas respostas podem ser encontradas na visão negativa que 33% homens – e 20% das mulheres – têm do feminismo. Para 19% dos homens e para 12% das mulheres, ser feminista é defender a superioridade da mulher sobre o homem. Já 16% dos homens e 8% das mulheres associam feminismo a autoritarismo das mulheres.
Como se cristalizaram esses dois aspectos negativos – e equivocados – sobre as reivindicações feministas? A primeira explicação, infelizmente, vem de erros cometidos – e raramente assumidos – pelas feministas. Em um livro no qual faz um balanço dos trinta anos de feminismo na França, a pensadora Elisabeth Badinter argumenta que há um desvio de rota no feminismo – ela está se referindo exclusivamente ao movimento francês – com o incentivo da vitimização das mulheres e excessos de “politicamente correto”, disfarce para a defesa de comportamentos moralistas que nada têm a ver com a origem das reivindicações das mulheres.
Por esse caminho, homens e mulheres estariam se tornando inimigos, num processo de enfrentamento que se expressa em frases exemplares colhidas na pesquisa: “Feministas são mulheres que acreditam estar sempre certas, são donas da verdade”, “Mulheres que não aceitam a opinião dos homens”, “Mulheres arrogantes”. São declarações que fazem eco à violenta reação dos setores conservadores em relação aos avanços desejados pelas mulheres, outra explicação possível para a associação enganosa entre feminismo e superioridade feminina. Nesses setores, tem sido uma estratégia recorrente associar o desejo de emancipação com o de superioridade, uma forma de arregimentar os homens contra a causa das mulheres. Reivindicar o fim da hierarquia de gênero não é reivindicar outro tipo de hierarquia na qual as mulheres estejam na posição superior.
O que não se percebe nessas acusações é que a emancipação feminina mudou para melhor a cara do século XX. Para as mulheres, tratava-se de se libertar do jugo das determinações de papéis preestabelecidos, atribuídos por supostas características biológicas, nas quais cabia à mulher o privilégio da sensibilidade, a obrigação dos cuidados com a casa, o bem-estar do marido e dos filhos, e uma vida dedicada à esfera doméstica. Esse discurso, construído a partir do século XVII, tinha por base a produção de uma diferença opositiva entre os sexos . A partir do momento em que as mulheres se libertam, essa demarcação de papeis cai por terra e aos homens passa também a ser dado o direito de escrever os roteiros de suas próprias vidas. Relações de gênero igualitárias passam a beneficiar ambos os lados.
Quando questionados sobre o que entendem por machismo, 29% dos homens e 31% das mulheres declararam à pesquisa: “São homens autoritários, que acham que a mulher tem que obedecer e ser submissa”. A emancipação feminina tem sido um longo processo de insubordinação. Não aos homens, mas principalmente a um conjunto de valores em que a hierarquia se sobrepõe ao desejo, a opressão à liberdade, o dever ao direito. Feministas foram precursoras nas mudanças que têm forçado a sociedade ocidental a reconhecer o diferente, o estranho, o outro. Causaram, com isso, um abalo na crença masculina de que ser homem era abarcar em si o conjunto universal da humanidade. Em conseqüência, o conceito de humanidade se ampliou, se democratizou, se abriu às singularidades e às pluralidades de vozes que começam a ser ouvidas. Que falem, gritem, cantem, e nunca mais se calem.
Carla Rodrigues
Publicado no portal Sesc SP



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