As ditaduras do bem (?) – o Egito e a mídia brasileira

3 fevereiro 2011

O artigo a seguir é uma colaboração especial de Mirgon Kayser*
Não é simples – ou talvez seja! – compreender o efeito dominó que assistimos nas últimas semanas: Uma onde de protestos derrubou o então ditador da Tunísia, Ben Ali – fato que, por si, já faz história. Ben Ali tornou-se o primeiro líder árabe da história a ser derrubado pela vontade popular. Em seguida, vemos o Egito em um surpreendente levante contra o regime de ferro de Hosni Mubarak, o qual – pelo bem do próprio Egito – espera-se que caia nas próximas semanas. A terceira peça a balançar é o presidente do Iêmen, Ali Abdullah Saleh. Saleh, é provável, não deverá sustentar mais seu regime de pé.
Sob os pontos de vista humanitário, humanista, democrático, é evidente que esse processo, embora ceifando vidas, gerando caos e tensão, trará o alvorecer de novas sociedades nesses países. Os regimes ditatoriais podem ter os mais variados formatos, mais ou menos liberdade, mais ou menos pobreza, mais ou menos violência. O único elemento de que nenhum deles prescinde é o medo. Somente através do medo, um punhado de homens pode controlar a seu bel prazer o destino de milhões. Tunisinos, egípcios e iemenitas perderam justamente aquilo que lhes tolhia, que lhes calava: o medo.

Quem dera todos os povos do mundo que estão sob o tacão ditatorial de um punhado de “iluminados” pudessem ser alcançados por esse efeito dominó, por esse antídoto contra o medo, pelo exemplo de tunisinos, egípcios e iemenitas. Infelizmente, ainda não será em 2011 que decretaremos a erradicação dos regimes totalitários, sejam eles de direita, de esquerda, ou de ideologia alguma. Mas o efeito dominó pode ir longe: o regime chinês – que de ditadura de esquerda migrou para uma ditadura capitalista – teme que os efeitos cheguem ao seu imenso país continental e já determinou o bloqueio da palavra “Egito” nos sites de busca na internet. Nenhuma página que contenha a palavra Egito pode ser acessada dentro do território chinês. Parece que o medo não é uma via de mão única…

O mundo – leia-se a população do mundo – vê com certa angústia os acontecimentos no Oriente Médio, mas existe certo consenso popular de que eles estão corretos, mesmo no que costumamos chamar de “excessos”. Não existe homem ou mulher no mundo de hoje que não esteja acompanhando os acontecimentos com ares de torcedor. Quem não flagrou-se, pelo menos uma vez, tendo movimentos musculares involuntários de ajuda para virar um carro – ou arremessar algum objeto contra as forças de Mubarak – durante os noticiários da TV que cobrem a crise no Egito, tal qual é comum acontecer quando assistimos a uma partida de futebol?
Infelizmente, essa revolução no mundo árabe, tão aplaudida por todos os que desfrutam da democracia – mesmo que ainda não em sua plenitude – e também aplaudida e desejada por todos aqueles que ainda a vêem por trás dos ombros de seus opressores, não é bem vinda para todos.
Durante os oito anos em que Lula foi presidente do Brasil, a imprensa foi bastante dura e não mediu palavras para criticar as boas relações do Brasil com Cuba e Irã, por exemplo. Não houve oportunidade em que as emissoras de televisão e os jornais impressos e digitais tenham deixado de emitir opiniões – muitas vezes forçadas – sobre como Lula não fazia oposição à Fidel e Ahmadinejad.
Causou-me estranheza o comportamento de grandes emissoras como a Rede Globo, sempre tão prestativa na defesa da democracia, em silenciar sobre o comportamento das grandes potencias mundiais no que diz respeito ao Egito. Pelo contrário, as primeiras noticias veiculadas na grande imprensa davam conta apenas de protestos relacionados à crise econômico que o Egito está mergulhado e sobre como Mubarak poderia “restabelecer a ordem e dar estabilidade ao governo”.
Claro que minha estranheza tinha algo de cínico, sarcástico, já que eu jamais esperaria que a nossa grande imprensa fosse pedir a cabeça de Mubarak com a mesma energia com que pede a queda de ditaduras como a cubana, a iraniana ou norte-coreana. No fundo, o que importa são os interesses. Fosse o regime cubano “queridinho da América”, e nossa grande imprensa o defenderia ao limite extremo da falta de argumentos.

Antes de ser um ditador, Mubarak é um aliado de Israel e dos Estados Unidos. Israel, a mesma Israel que possui um campo de concentração chamado Faixa de Gaza, em que “guarda” o povo palestino e sobre o que a grande imprensa brasileira sempre silencia, teme a queda de Mubarak. Para Israel, a ditadura de Mubarak serve aos seus interesses, não importa se o regime é totalitário, não importe se o povo egípcio sofre com a mão pesada de Mubarak sobre suas cabeças, vidas e consciências. Mubarak impede que os muçulmanos conquistem poder no Egito e, de quebra, é um importante parceiro político na região.

Por argumentos semelhantes, os Estados Unidos nunca implicaram com o regime egípcio. Israel e Egito são os grandes parceiros dos Estados Unidos em toda aquela região. Os mais confiáveis, os mais fiéis, os mais presentes e os que possuem mais interesses comuns. Por qual razão haveria os Estados Unidos de pedir a cabeça de Mubarak? Se Mubarak vier a cair – e cairá, ao que tudo indica – não será nenhuma surpresa se o Egito passar a ser um país pouco quisto pelos governantes estadunidenses. Afinal, é melhor uma ditadura que me sirva do que uma democracia que eu não controle! Para que serve uma democracia que não posso controlar? Esse é o pensamento estadunidense e o amor por Mubarak passa exatamente por esse ponto. E o povo egípcio que se lixe.
É como se existissem as ditaduras “do mal” e as ditaduras “do bem”. Não existem ditaduras do bem ou do mal. Existem apenas ditaduras – e todas elas devem tomar, mais cedo ou mais tarde, o mesmo caminho da desintegração. Como disse certa vez o ex-deputado Marcos Rolim – não nestas palavras exatas, mas com esse significado, não adiantará que se faça o melhor governo já visto, se isso não significar aumento da participação democrática da população nos destinos da sociedade.
Nossa imprensa, como sempre, apresenta seu viés ideológico nessas situações onde claramente interesses polarizam-se e o juízo de valor emitido por ela não se desloca em torno daquilo que nos parece o mais correto e sim, em torno daquilo que é mais vantajoso aos interesses que cruzam-se com os dela. Existe um alinhamento ideológico entre a nossa grande imprensa e os Estados Unidos – e natural que seja assim, defendem o mesmo tipo de sociedade.
O que é realmente ultrajante é que sigam fazendo o discurso dos arautos da democracia. A democracia que lhes interessa, só se for. Democracia em Cuba é pra ontem, no Egito é melhor estabilizar a ditadura. Como assim? Toda ditadura, por excelência, seja ela de esquerda ou de direita, é nefasta ao desenvolvimento da humanidade. Vivemos em sociedade – o que significa que somos senhores de nossas vidas, com o componente condominial da vida em sociedade, o qual chamamos de Estado e outorgamos certos poderes para que possam administrar corretamente nosso condomínio social. Essa é a famosa afirmação de que “o poder emana do povo”. Não emana do povo porque é o povo quem elege seus representantes, emana do povo porque é a outorga de parte de seus poderes naturais e inalienáveis como seres humanos, direitos que deveriam ser adquiridos universalmente ao nascimento em qualquer lugar.
Pela força, um punhado de homens durante a história da humanidade extirpou a carga total de poder de milhares e milhões a sua volta, tomando-o para si, como se fossem realmente deles. Pela maior parte de nossa história, vivemos dessa forma – tanto tempo que até esquecemos exatamente o sentido do que é o Estado, a sociedade, os governos. Tanto tempo de poder extirpado que nos parece absolutamente natural que os governantes determinem nossos destinos – quando deveriam somente executar nossa vontade.
A experiência democrática tem, pouco a pouco, devolvendo aqui e ali, a consciência sobre o que é a sociedade e a quem pertence o poder e a responsabilidade de construí-la. Por óbvio, os ditadores e os herdeiros desses espólios farão força para continuarem exatamente onde estão – e para isso contarão com seus aliados, inclusive aqueles que se dizem defensores da democracia. Contarão também com a simpatia sonsa da imprensa de outros tantos países que preferirão falar sobre como o exército defendeu o Museu do Cairo e sobre como Mubarak estabiliza o Oriente Médio, do que falar sobre como o Egito pode ser melhor num regime democrático, sobre como os tunisinos fizeram história e sobre como será a vida dos iemenitas sem seus opressores.
Nossa imprensa tem muito a aprender sobre democracia, sobre liberdade de expressão e sobre responsabilidade de imprensa. Nossa imprensa ainda confunde ditaduras com governos estabilizadores, quando na verdade são ceifadores de consciências. Confunde wikileaks com espionagem, quando é na verdade o bom e velho direito de imprensa e de informar à população o que está acontecendo. Confunde a avaliação do que são informações relevantes, segundo seus interesses comerciais (por exemplo: quem viu a Globo noticiar que Débora Secco responde processo por formação de quadrilha e desvio de dinheiro público junto com seu pai e com Anthony Garotinho? Eu não vi). Confunde democratização da informação e regulação da mídia com censura.
Logicamente que a nossa grande imprensa “confunde” isso tudo com o mesmo cinismo e sarcasmo com que eu estranho suas posturas. Mas como escrevi a um tempo atrás, tudo tem sua hora – e o réquiem para a grande mídia já foi composto, já aguarda esse gigante moribundo. Esse dominó mais cedo ou mais tarde alcançará também seus apoiadores. Não há mais lugar no mundo para ditaduras – sejam elas de Estado, sejam elas de informação.
E todo apoio aos egípcios!
*Mirgon Kayser é editor do Blog do Mirgon

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