Por Raquel Júnia /EPSJV-Fiocruz, 14.12.2010
Ás vésperas do Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi lançado o relatório Direitos Humanos no Brasil 2010, no último dia sete de dezembro. O documento revela o quanto o país precisa avançar na garantia de direitos às populações. Em 26 artigos e 216 páginas, o relatório denuncia, por exemplo, que em todo o sistema prisional em junho de 2009 havia 111 pedagogos e 329 professores, para um total de mais de 75 mil servidores penitenciários, o que demonstra o descaso com a educação e a supervalorização do controle. Ou que metade das denúncias de trabalho escravo não produziu fiscalização; ou ainda que uma série de manobras jurídicas tem sido usada contra trabalhadores que insistem em fazer uso do direito de greve, previsto na Constituição, o que tem resultado em multas para os sindicatos e demissão de trabalhadores.
O relatório é produzido pela Rede de Justiça e Direitos Humanos há 11 anos, durante os quais mais de 120 instituições públicas, movimentos sociais, organizações não governamentais, sindicatos e grupos de pesquisa contribuíram. Nesta 11ª edição, colaboraram mais de 20 organizações. “Algumas demandas centrais e históricas não foram atingidas e permanecem nesse relatório. Principalmente em relação à questão da terra, tanto da reforma agrária, quanto da demarcação de terras indígenas e quilombolas, avaliamos que esse tema poderia ter avançado, mas é uma questão que o governo Lula não deu conta de atender. Então, houve um consenso em incluir a questão rural, que permanece um problema no Brasil”, sintetiza a coordenadora da Rede de Justiça e Direitos Humanos e uma das organizadoras do relatório, Maria Luisa Mendonça.
Ela explica que, além da questão agrária, há temas recorrentes no relatório em todos esses anos, como o trabalho escravo, a violência urbana, o direito à educação. Além disso, de acordo com a conjuntura vivida, outros temas são incluídos – é o caso do debate sobre os direitos reprodutivos e a violência contra a mulher, intensificados este ano diante da despolitização do processo eleitoral sobre o tema. O tema da segurança pública também foi potencializado. “O relatório trata da violência urbana e como isso tem sido banalizado. Nós vimos claramente isso agora com a situação no Rio de Janeiro, a violência policial sendo aplaudida pela população. Percebemos que, apesar dos avanços que conseguimos colocando essa agenda dos direitos humanos para a sociedade, ainda permanecem resquícios da ideia reacionária de que direitos humanos é defesa de bandido. Então, temos que continuar fazendo este debate”, afirma Maria Luisa.
Educação nas prisões
Por meio de um artigo dos pesquisadores Mariângela Graciano e Sergio Haddad, da ONG Ação Educativa, a publicação aborda o descaso com a educação dentro dos presídios. Os autores relatam as várias barreiras que os educadores encontram dentro dos presídios para exercerem seu trabalho e o quanto são em número reduzido. “Um dos aspectos da educação no Brasil em que a violação de direitos é uma das mais graves é o que ocorre nas prisões. Esquecida por muitos anos, não reconhecida como um direito, ofertada para poucos, com baixa qualidade, são apenas algumas das características da educação prisional”, explicam.
Os dados apresentados no artigo mostram que 65,7% da população carcerária brasileira não concluiu o ensino fundamental.A grande maioria dessa população é masculina, mais de 56% tem menos de 29 anos e é negra. “A Lei de Execução Penal determina que a assistência ao preso e ao internado seja dever do Estado – objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade – e que essa assistência seja material, incluindo os campos da saúde, assistência jurídica e formação educacional, social e religiosa”, salientam os autores. Para eles, entretanto, os indicadores fornecidos pelo próprio Ministério da Justiça revelam que essa assistência no campo educacional não é colocada em prática, já que em junho de 2009 apenas 8,4% da população carcerária freqüentava atividades de educação escolar.
O baixo número de profissionais ligados à educação também mostram que o tema não é considerado de relevância dentro do sistema penitenciário, os professores e pedagogos correspondem a 0,4% e a 0,1% dos servidores penitenciários. “Depoimentos de professores vinculados a redes públicas de ensino, e também de educadores de ONGs que atuam nas prisões, demonstram que estes profissionais enfrentam dificuldades para a realização de seu trabalho, sendo constantemente constrangidos pelas regras, muitas vezes arbitrárias, de segurança. Não há instâncias para acolher as violações sofridas e presenciadas por educadoras/es, e relatos indicam que a educação é subordinada à área de segurança”, relatam os pesquisadores. De acordo com eles, muitas vezes as aulas são suspensas sem justificativas concretas.
Mariângela e Sergio também apontam que as normas que regem o tema não são claras quanto ao dever do Estado de garantir a educação escolar nas prisões. Apesar disso, eles consideram um avanço a aprovação recente pelo Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Curriculares para Educação nas Prisões, mas ressalvam: “a implementação de tais diretrizes depende da vontade política e, principalmente, da mobilização da sociedade civil nos estados. É preciso a união de esforços das organizações do campo da educação e dos direitos humanos para evitar que o sistema carcerário se adapte a mais essa norma”.
Greves reprimidas
Maria Luisa Mendonça explica que o tema do trabalho é sempre recorrente no relatório e que neste ano, além das denúncias de que há muito o que fiscalizar em relação a trabalho escravo no Brasil, outra análise também foi feita – a do direito dos trabalhadores em se organizar para pressionar por melhores condições de trabalho. “Por um lado houve um aumento do emprego no Brasil e inclusive o aumento das greves, porque o aumento do emprego propicia também que o movimento sindical se organize, organize greves e reivindique seus direitos. Mas por outro lado, permanece uma criminalização das greves, que são tratadas como se fossem um problema para a população. O judiciário aplica multas enormes a sindicatos. Na prática, não existe direito a greve no Brasil. Apesar de ser reconhecido, na prática ele não é cumprido”, destaca a pesquisadora.
No artigo As novas formas de repressão a greves, Ricardo Gebrim e Thiago Barison, destacam que os artigos 522 e 543 da CLT, que tratam da estabilidade dos dirigentes sindicais foram sendo reabilitados pelo poder judiciário, apesar de revogados com a Constituição de 1988. Os autores explicam qual a consequência disso para os trabalhadores: “por tais dispositivos, coerentes com um regime jurídico de atrelamento dos sindicatos ao Estado, somente um máximo de sete diretores e mais três membros do conselho fiscal são protegidos contra a dispensa sem justa causa. Além de ser um número que não guarda relação alguma com o tamanho da categoria e sua dispersão espacial, restaram excluídos dessa proteção os delegados de base. Vale dizer, qualquer outro trabalhador que se empenhe mais ativamente na organização do movimento grevista corre o risco da dispensa. Em categorias volumosas, esse obstáculo pode inviabilizar, na prática, a organização de uma greve”, criticam.
Os autores citam também várias outras afrontas ao direito dos trabalhadores a se organizarem, casos de quantias volumosas que os sindicatos foram condenados a pagar por dias parados, proibições diversas e o fato do Supremo Tribunal Federal ter considerado constitucional a Lei de Greve e estendê-la a servidores públicos civis. “O Ministério Público e o Judiciário passaram a impor às greves com capacidade de causar transtornos – as únicas efetivas – a exigência de retorno ao trabalho para 80% da categoria e, em algumas atividades ou horários, para 100%, sob pena de multa diária de R$ 100 mil4 ao sindicato, tal como o experimentaram os petroleiros. O verniz benfazejo e democrático é pincelado à multa ao destiná-la a instituições filantrópicas, universidades e hospitais”, relatam.
Para os pesquisadores, só é possível que os trabalhadores se contraponham a esta lógica se estiverem unidos. “Isoladamente, nenhuma categoria tem condições de enfrentar essa blindagem jurídica. Mas o seu surgimento claro no cenário político não é senão o primeiro passo para sua superação, rumo a um regime jurídico da greve e das lutas sociais mais democrático e capaz de nos conduzir aos objetivos que outrora esses mesmos trabalhadores
contribuíram para inscrever na Carta Magna”, concluem.
Contradições
contribuíram para inscrever na Carta Magna”, concluem.
Contradições
Se houve avanços nos dois mandatos do presidente Lula com relação aos direitos humanos, este período de oito anos também foi marcado por contradições. Para Maria Luisa, muitas das análises contidas no relatório mostram isso. “Nesse próprio debate do Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH 3), vimos que há setores no governo que são aliados nossos e que fazem esforços para avançar nesses temas. E o PNDH 3 foi muito simbólico em relação a essa proposta de abertura dos arquivos da ditadura, o tema dos direitos reprodutivos, trazia algumas propostas de avanço. Mas ao mesmo tempo houve também um recuo, um ataque da direita que fez o governo recuar em vários temas. Então, é um processo marcado por grandes contradições, que continuamente temos que tentar superar, mas permanece como um desafio”, avalia.
A pesquisadora acredita que é preciso intensificar a disputa pelo conceito de direitos humanos e que, apesar de as pessoas já o compreenderem, em vários momentos há retrocessos. “Tentamos mostrar que os direitos humanos são parte do nosso dia a dia, o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia. Os direitos humanos tem que ser visto a partir dessa ideia mais ampla. Mas vira e mexe volta esse discurso reacionário, como vimos no Rio de Janeiro, da repressão e violência como necessárias. É uma batalha constante que temos que fazer”, afirma.
A pesquisadora acredita que é preciso intensificar a disputa pelo conceito de direitos humanos e que, apesar de as pessoas já o compreenderem, em vários momentos há retrocessos. “Tentamos mostrar que os direitos humanos são parte do nosso dia a dia, o direito ao trabalho, à educação, à saúde, à moradia. Os direitos humanos tem que ser visto a partir dessa ideia mais ampla. Mas vira e mexe volta esse discurso reacionário, como vimos no Rio de Janeiro, da repressão e violência como necessárias. É uma batalha constante que temos que fazer”, afirma.
Para Maria Luisa, apesar de o Brasil ter em vários aspectos uma legislação adequada, isso não é suficiente para a garantia dos direitos. “A concretude da batalha jurídica depende muito mais da capacidade de organização da sociedade. O relatório é um instrumento de informação, de educação, mas na verdade, este é um processo que demanda organização em torno desses temas e correlação de forças políticas”, conclui.
(*) Reportagem publicada orginalmente na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (FioCuz).
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