por Gabriela Ramos
“Traga Fulana pra cidade, ela me dá uma ajuda nas coisas aqui de casa, a gente dá abrigo, estudo e comida”. Não! Isso não é uma adoção, é exploração e a submissão de uma menina-futura-mulher à condição de trabalho análogo à de escravizada.
Como não é novidade pra ninguém, o Brasil passou por um longo e doloroso período colonial utilizando mão-de-obra escravizada para se perfazer enquanto Estado, até que um belo dia, ainda no século XIX, vieram de cabeças brancas e eurodescendentes algumas medidas que deram início ao processo de abolição oficial da escravatura. A primeira delas foi a Lei Euzébio de Queiroz (1850) que proibiu o tráfico de escravizadas/os; depois a Lei do Ventre Livre (1871) que fez supostamente livres as/os filhas/os das/os escravizadas/os; a terceira foi a Lei dos Sexagenários (1885) que libertou todas/os as/os escravizadas/os com idade superior a 65 anos e a quarta a Lei Áurea (1888) que aboliu definitivamente a escravidão.
Observando a História com o cuidado que ela requisita para que não nos prendamos a versões oficiais odiosas, não vai ser difícil perceber que essas quatro medidas legais para extinguir a escravidão não foram adotadas pelas/os colonizadoras/es induzidas/os por uma súbita crise de consciência, quiçá por um ataque de generosidade. A conjuntura econômica da época não mais se adequava ao modelo escravocrata de mão-de-obra, sobretudo depois da inserção de imigrantes europeus que não eram da realeza e precisam se empregar, ganhar dinheiro e consumir para sustentar e encorpar o emergente sistema econômico capitalista. Contudo, os sinhôs e sinhás não iam, a partir dali, começar a fazer as tarefas domésticas e havendo a necessidade de delegar tais atividades a alguém que pudesse ser submetido às mesmas humilhações de sempre e, obviamente, cobrasse pouco ou quase nada. A abolição oficial, portanto, uniu o útil ao agradabilíssimo nesse contexto já que as/os negras/os libertas/os foram lançadas/os à própria sorte (ou azar) sem nenhuma política pública que os inserissem de fato na sociedade, sendo, portanto, marginalizadas/os, colocadas/os à margem. Diante da necessidade de sobrevivência é que surgiram quituteiras, lavadeiras de ganho e obviamente, os/as empregados/as domésticos/as.
Com o passar do tempo e de mais de um século, é óbvio que alguma coisa há de ter mudado: da época da abolição até os dias atuais o Brasil já promulgou seis Constituições e em nenhuma delas havia se equilibrado a relação de trabalho dos/as domésticos/as ou foram empreendidas tentativas de assegurar direitos e condições de trabalho fidedignas às demais relações laborais. A Constituição de 1988, ainda vigente, é conhecida como Constituição Cidadã, mas até então não tinha equiparado os direitos trabalhistas dos/as domésticos/as ao das/os demais trabalhadoras/es, embora seja verdade que em muito ela já tivesse avançado se comparada às demais.
As relações de trabalho dos/as empregados/os domésticos/as migrou de uma esfera de agressões físicas dos açoites senhorais para agressões psicológicas e emocionais. Interessante como mudou a forma de lidar com os/as empregados/as já que, legal e moralmente, não mais se admitia que fossem submetidos/as a situações gritantemente humilhantes: de repente, aquele/a empregado/a começou a ser considerado membro da família, muito embora continuasse servindo a mesa e comendo na área de serviço. Essa afetividade induziu situações de acomodação dessas relações à medida que não havia um questionamento sobre carga horária, atribuições, excesso de trabalho, baixa remuneração, etc. Um “silêncio ensurdecedor” tomou conta de muitos/as “amigos/as da família” por que não queriam perder a boa relação com as/os parentes de consideração. Não quero dizer que não existem relações reais mantidas com base na afetividade, mas é muito evidente que beijos, abraços e palavras de confiança por muito tempo camuflaram jornadas excessivas, repousos limitadíssimos e o recuo na exigência de respeito − elos que, ao invés de afagar, acorrentavam.
O bom é que chegou o momento em que o silêncio foi rompido pela percepção de que havia alguma coisa errada nessa relação amorosa que que, consequentemente culminou na mobilização e organização dos/as empregados/as domésticos/as em associações e entidades de classe. Se as medidas legais do século XIX vieram de cima pra baixo e com pretensões outras que não o direto benefício das classes escravizadas, a abolição do século XXI veio da luta dos/as próprios/as explorados/as com o desenho de uma Emenda Constitucional: depois de um 13 de maio, temos um 26 de março. Espero que outras datas surjam determinando marcos de libertações outras e que, de preferência, demorem menos a chegar.
É certo que a Lei Áurea e as suas antecessoras não conseguiram mudar a mentalidade escravagista na época e acabou por criar outros mecanismos de exploração e outros modos de manifestação do racismo. Da mesma forma acredito que não será a Emenda Constitucional 72/2013 que fará patrões e patroas entenderem que sua comodidade é fruto do suor alheio e que, portanto, deve ser adquirido como artigo de luxo. Essa relação com o/a empregado/a não precisa ser afetuosa e sim, humana, digna e que resguarde suas condições física, psicológica, emocional e financeira.
Leis não mudam mentalidades, mas indicam que há alguma nova ordem sendo estabelecida. O direito em si acompanha (ou pelo menos tenta) a dinâmica da vida em sociedade, portanto, quando há alguma mudança substancial no ordenamento jurídico, necessariamente alguma coisa está mudando na sociedade. Isso implica em dizer que, embora ainda existam os sinhôs e sinhás psicológica e ideologicamente, a nova ordem estabelecida se sobrepõe às suas mentalidades escravocratas e isso não vai mudar, sob pena do país ser vitimado pelo retrocesso.
São importantíssimas as novidades trazidas pela PEC e serão muitas as mudanças no cotidiano de empregadas/os e empregadoras/es. Em outro momento tratarei dos aspectos jurídicos, sobretudo, questões polêmicas e possíveis entraves para a adequação ao novo dia-a-dia. Exemplo de situação polêmica será a dos/as empregados/as que dormem nos locais de prestação de serviço e direitos como adicional noturno, horas-extras e jornada em situação de sobreaviso. Dada a minuciosidade das questões que exigem um aprofundamento na análise jurídica, mais adiante farei uma postagem específica. O que importa é que agora novidades como a limitação da jornada a 8 horas diárias, delimitação de intervalo intra e interjornada e pagamento de horas-extras mudam o tom essencial do que vem a ser empregado/a doméstica. Agora, mais perto da realidade dos demais profissionais, não mais serão responsáveis pela estruturação das famílias e casas alheias em detrimento das suas próprias.
**Em tempo quero registrar que fiz questão de intitular o texto usando o termo Empregado Doméstico no gênero masculino por que, além de estar relacionados entre as atividades domésticas tudo que diga respeito à casa e à família (mordomo, babá, motorista, jardineiro, segurança), o sexismo sempre faz divisões estanques de lugares ocupados por homens e mulheres, quando essa sistematização nem sempre traduz a realidade. É certo que a maioria dos postos de empregos domésticos são ocupados por mulheres, e, mais que isso, por mulheres negras, mas ser maioria não significa ser o todo. Eu também podia ter utilizado o gênero feminino para englobar homens e mulheres, como gosto de frequentemente fazer, mas nesse caso, fiz questão de deixar desse jeito. Algumas coisas ainda precisam sair das suas ordens naturalizadas (e não naturais).
*PEC = Proposta de Emenda Constitucional, meio de alterar a Constituição Federal e que exige quórum especial já que a Carta Magna tem requisitos rígidos para ser modificada.
Gabriela Ramos, advogada, escritora amadora e amante dos poemas e crônicas no blog –http://gabrielaashanti.blogspot.com.br/
Texto disponivel em Blogueiras Negras
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