Como
raras vezes se vê ocorrer, os últimos dias foram e continuam sendo de
comoção em torno da maltratada causa indígena no Brasil. Após uma ordem
de despejo da 1ª Vara Federal de Naviraí (MS) sobre terra indígena
dominada por fazendeiros em Dourados (MS), os índios guarani kaiowá
anunciaram através de carta aberta que não aceitavam a decisão e
ficariam em suas terras ancestrais, vivos ou mortos, o que chegou a ser
interpretado pelo público como um indicativo de suicídio coletivo.
Não
era exatamente do que se tratava, pois os índios afirmavam que lutariam
até o fim pelas terras e descartavam qualquer retorno à miserabilidade
das cidades ou das beiras de estradas. De toda forma, o Brasil inteiro e
agora o mundo veem se acirrar o conflito entre os latifundiários e seus
habitantes originários, que por sua vez têm sido vítimas de uma
crescente violência, representada pelas cerca de 500 mortes de índios
guarani no estado desde 2003.
“Só
nas aldeias Passo Piraju, Bokerón e Pyelito Kue (região de Dourados),
são 412 famílias. Desde 2004, há um mandado de reintegração de posse.
Hoje, a aldeia é estruturada, com água, energia, escola, posto de saúde,
roça, animais, pomares...”, conta o cacique guarani Ládio Veron, que se
encontra em São Paulo até 1º de novembro em busca de apoio e divulgação
da causa guarani-kaiowá.
Na
conversa com o cacique da aldeia Takuara (também afetada pela violência
do “moderno” agronegócio), hospedado na metrópole por militantes
sociais, fica claro que a repercutida declaração de guerra dos
fazendeiros do Mato Grosso do Sul é concreta, já se traduzindo em cercos
armados por pistoleiros em diversas fazendas, ou suas beiradas,
ocupadas e acampadas pelos índios, em sua maioria guarani neste estado.
“Já
temos 46 novas aldeias prontas pra serem reconhecidas. Três tiveram
terras homologadas e outras três demarcadas. Todas foram embargadas pelo
STF. Falta o estudo antropológico de todas as outras. A demora da FUNAI
leva ao conflito. Nisso, somos muito ameaçados pelos fazendeiros e
pistoleiros. E o índio começa a cansar, começa a acampar, mesmo em
péssimas condições – sob sol, chuva, na lama, tem índio vivendo assim
embaixo só de uma lona preta”, explica Ládio, deixando claro que os
indígenas não abrirão mão de retomarem seus territórios,
independentemente de saírem ou não as homologações e demarcações que
esperam eternamente. “A takuara tem 90 hectares e 88 famílias,
aguardando a demarcação. Mas Gilmar Mendes suspendeu todos esses
processos de demarcação e homologação que citei”, completa.
Tal
decisão não surpreende, ainda mais vinda de um magistrado famoso pela
atuação política coronelista desde sua terra natal (Diamantino-MT),
onde, por sinal, amealhou terras por meio de seus amigos da ditadura,
como já comprovado pela imprensa. O pior, no entanto, é o padrão de
decisões da justiça, em especial a sul-mato-grossense, sempre em favor
dos proprietários brancos, quaisquer sejam as circunstâncias e perigos
em jogo. “Nas mãos da justiça de São Paulo, os assassinos foram presos.
Depois, o processo foi pra justiça do MS, que libertou os assassinos do
meu pai. Agora, eles voltaram às milícias e continuam aqui nos
ameaçando”, denuncia Ládio.
Aliás,
o cacique também já foi alvo dos algozes do Cerrado, no que configura
um método, no sentido de desfigurar a resistência e identidade
indígenas. “Muitas lideranças estão morrendo, caciques, professores,
rezadeiras. Eles têm como estratégia eliminar as referências dos índios e
com isso enfraquecer mais ainda sua luta. Hoje morrem muito mais índios
do que no tempo do FHC, quando nenhuma liderança morria”, disse,
desnudando mais esse fracasso do governo Lula, disfarçado pelo ufanismo
publicitário que exalta o “dinamismo” do agronegócio e sua importância
na balança comercial do país.
Virada
Após
prometer que demarcaria todas as terras indígenas já estudadas
antropologicamente, o ex-presidente voltou a mostrar suas inumeráveis
facetas políticas ao fechar acordo de biocombustíveis com o então
presidente dos EUA, George Bush, nos idos de 2007, dando início a um
período de inaugurações em série de usinas de álcool e cana de açúcar,
geralmente tocadas à base de trabalho escravo e cujos donos foram por
ele qualificados como “herois nacionais”.
“Depois
das promessas não cumpridas, Lula fez o acordo dos biocombustíveis e
foi aí que o jogo virou. Passou a falar em usinas, foi a inaugurações em
que foi recebido com tapete vermelho de 10 metros pelos
fazendeiros...”, lamenta o cacique.
Como
desgraça pouca tem sido bobagem, os indígenas, na prática, não podem
contar com o órgão oficial que em tese deveria estar a serviço de seus
interesses. “A FUNAI, por sua vez, alega falta de estrutura. Não é o que
vemos quando vamos lá. Tem funcionário se amontoando, assim como as
cestas básicas que deveriam ser entregues aos índios”, critica.
Conforme
avança a conversa com a liderança guarani, o mesmo ocorre com o grau de
surpresa a respeito dos atos do órgão indigenista, o que faz suspeitar
que seu principal papel seja o de praticar um jogo duplo que contenha a
indignação dos índios, ao passo que mantém na mais extrema morosidade os
processos de reconhecimento e entrega de terras. Inclusive, fazendo
ameaças.
“A
FUNAI tenta nos retaliar quando nos pronunciamos, vem dizer que não
podemos e fazem ameaças. Foram ao MP pedir algum tipo de decreto que
impedisse oficialmente as lideranças de se pronunciarem publicamente.
Mas não tenho medo disso, vou falar. Alguém tem que sair de lá e falar.
Outros também farão isso”.
Uma política de Estado
Apesar
da indignação que se espalha com considerável alcance pelo país ante
uma clara possibilidade de genocídio, não se pode vender ilusões de que a
atual mobilização pelos direitos indígenas (reconhecidos pelo Brasil em
sua Constituição e também por convenções da Organização Internacional
do Trabalho) carregue consigo grandes chances de êxito, ao menos no
curto prazo.
“Ao
contrário do que diz o governador, não queremos o MS todo pra gente.
Mas com 3539 hectares habitados por 16.000 famílias não há espaço pra
mais nada, não tem onde plantar mais alguma coisa. As áreas que um dia
foram demarcadas pelo antigo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) já estão
todas lotadas. A FUNAI demarcou mais 12, todas já lotadas. E ainda por
cima cercadas pelo agronegócio”, explica Ládio.
Dessa
forma, depreende-se que não é sem alguma “racionalidade” que os
fazendeiros intensificaram sua ofensiva antiindígena nos anos
Lula/Dilma. Noves fora a milonga governista, as medidas práticas saídas
de Brasília vão no claro sentido de incentivar os monocultivos e a total
e desbragada exploração capitalista dos bens naturais.
A
recente destruição via parlamentar do Código Florestal apenas escancara
o caminho tomado pelo governo autointitulado “democrático-popular”. Com
isso, não se pode colocar somente na conta de políticos, magistrados e
fazendeiros locais a atual barbárie, representada por diversos cercos a
aldeias indígenas em todo o estado, o que denota uma coordenada
estratégia política, certamente bem calculada e amparada nos bastidores
da República.
“Não
tem mais Cerrado, Caatinga, mata alta... Estão acabando com tudo. Não
temos mais as plantas medicinais que existiam aqui, por exemplo, pois
pra onde se olha é um mar de cana. Eles derrubam tudo mesmo, cada
árvore, dizendo que é por causa do veneno jogado por avião nos
monocultivos. E aí não tem limites de intoxicação... A água da aldeia
Takuara era cristalina; hoje está amarelada, pela poluição, agrotóxicos.
Não tem mais peixe, não dá pra caçar, os rios estão secando”, enumera
Ládio.
Enquanto
isso, os guarani seguem em seu clamor por socorro e solidariedade,
pois, ao contrário do homem branco explorado, não aceita ou deseja
compreender a retirada do habitat natural em favor de um
“desenvolvimento” que jamais debateram. Milênios antes dessa cunha, já
tocavam suas vidas em harmonia com a natureza com a clareza de que tais
terras são seu sustento, sendo obrigatória sua permanente preservação,
através de todas as gerações.
“Esse
Código Florestal que fizeram aí já está acabando com tudo. O cheiro da
cana é insuportável. Mesmo ficando a alguns quilômetros da cidade,
quando o vento bate nessa direção todos podem sentir, a garganta seca,
pessoas passam mal... E o Lula teve a coragem de inaugurar usina em cima
de terra indígena, no caso a Usina Nova América. Esse governo só olha o
dinheiro, o lucro, esquece que existem povos e nações ali”.
Disponivel em http://www.intersindical.inf.br/noticias_det.php?id=948
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