A gente ouve isso toda semana: “Feminismo pra quê?! Vocês já conseguiram o direito a voto!”. Os caras (é, quase sempre são caras) que dizem essa besteira não têm a menor ideia de como foi difícil essa conquista, e como tá cheio de pessoas que querem tirar nosso direito (eles que tentem!).
Vou começar falando das dificuldades. O mais interessante de pesquisar quando as mulheres conquistaram o voto é ver que todos os insultos usados contra as feministas hoje (mal amada, feia, ogra, brava, odiadora de homem, peluda, ninguém te quer, quer virar homem etc) já eram usados contra as sufragistas mais de 150 anos atrás. Cadê a criatividade desse povo preconceituoso? (clique nos cartuns para ampliá-los).
Lógico que as ofensas repetidas durante décadas não acontecem só com feministas. Sabe os “argumentos” que os conservadores usam contra casamento gay hoje em dia? Tipo aquele (é um dos meus preferidos) que se a sociedade permitir que pessoas do mesmo sexo se casem, daqui a pouco teremos humanos se casando com animais? Pois então, falavam exatamente isso de casamento interracial, que era proibido nos EUA até 1965. E a civilização não acabou, né?
Em Nova Jersey, um desses estados devastados pelo Sandy -– até pouco tempo atrás, todos os furacões recebiam nomes femininos, aí alguém percebeu que o costume era meio machista -–, as mulheres que tinham propriedade (o que excluía as casadas, já que toda a propriedade ficava no nome do marido) puderam votar entre 1790 e 1807. Essa foi uma exceção nos EUA e no mundo. O primeiro país a permitir que mulheres votassem foi a Nova Zelândia, em 1893. Que elas se candidatassem a alguns cargos foi a Austrália, dois anos depois.
Um texto curtinho que gosto de passar pra uma turma minha de Inglês e Cultura é “Are Women Human Beings?” (As mulheres são seres humanos?), de Charlotte Perkins Gilman. É de 1912. Parece uma pergunta óbvia, mas pense num dos slogans atuais do feminismo –- “feminismo é a ideia radical de que mulheres são gente” -–, e saiba que, enquanto as sufragistas lutavam, havia homens importantes afirmando que mulheres não pertenciam à raça humana. Um deles, Grant Allen, escritor de artigos científicos, informava: “mulheres são uma sub-espécie apenas com a finalidade da reprodução”.
Na época, dizia-se que as mulheres deveriam se contentar com seu poder de atrair homens pela sua beleza e pela capacidade em ser mães. Parece familiar? As funções femininas eram ser bonitas e maternais. E todas as outras funções eram masculinas. Logo, uma mulher querer votar seria uma tentativa de se equiparar ao homem.
Gilman (autora do clássico conto “O Papel de Parede Amarelo”) contesta: para ela, funções não são masculinas ou femininas, mas humanas. E fazem parte do progresso humano. Ela critica os homens por pensarem que promover guerras é algo masculino: “a guerra não é um processo social, e sim uma doença social”.
Os jornais do início do século passado eram contra o voto feminino, e logo apelidaram as sufragistas de “suffragettes”, para poder satirizá-las melhor. Há coleções inteiras de cartuns e cartões postais se opondo a essas feministas, dizendo como elas eram horrendas, histéricas e masculinas. Coloquei alguns deles no post, mas você pode ver muitos outros aqui.
Enquanto os conservadores não entendiam por que as mulheres precisariam votar -– afinal, os pais e maridos já faziam isso por elas, sempre pensando nos seus melhores interesses, claro -–, o pessoal mais progressista via o voto feminino como uma manobra para que o voto de outras minorias valesse menos. Nas marchas que sufragistas promoviam, cuspiam nelas. Na Grã-Bretanha, algumas sufragistas faziam greve de fome, e a polícia as alimentava à força. A verdade é que custou muito obter a conquista do voto. E o que era dito na época, inclusive com o aval da ciência, continua sendo dito hoje. Por exemplo, já ouviu a última de que nossa ovulação afeta o modo que votamos? Esta “prova” de como somos volúveis e emocionais é do século retrasado... e também do mês passado.
Pois é. Mesmo depois de tanta luta e de poucas décadas de voto feminino, conservadores continuam dizendo que nosso direito é um erro. E não estou falando só dos mascus, que obviamente acham que mulher não sabe fazer nada, quanto mais votar (isso vindo de um grupo que quer eleger Bolsonaro presidente!). Olha, fazia tempo que os americanos não se perguntavam tanto sobre o voto feminino como nessas eleições presidenciais que acontecem hoje.
O motivo é bastante óbvio: o partido republicano decidiu caminhar da centro-direita para um ponto mais extremo, e as principais vítimas do seu novo posicionamento são as mulheres. Se Mitt Romney ganhar (Zeus proíba!), veremos direitos reprodutivos conquistados há décadas retrocederem. Está na plataforma de governo deles proibir que o aborto seja realizado em qualquer caso, estupro incluso. E melhor nem mencionar que o Estado Mínimo defendido por eles não contempla essas frescuras de creches e saúde pública.
Depois que o radialista Rush Limbaugh chamou a estudante de direito Sandra Fluke de vagabunda por ela pedir que os planos de saúde distribuam gratuitamente pílulas anticoncepcionais, Obama declarou que as propostas de Romney para direitos das mulheres “eram mais apropriadas para os anos 1950 que para o século 21”. Então foi a vez de outra comentarista ultraconservadora, Ann Coulter, intervir e afirmar que a base de Obama era composta de “mulheres solteiras estúpidas”.
Coulter ainda advertiu as mulheres solteiras estúpidas o que acontecerá se passar o “Obamacare”, projeto de Obama para saúde universal: “Ótimo, você terá anticoncepcionais grátis, mas será o fim da América!”
Ok, não é a primeira vez que Coulter, ela mesma uma mulher solteira, se posiciona contra o voto, uhn, o voto dela mesma. Ela vem pregando contra o voto feminino desde 2003, e seu motivo é que, se as mulheres não votassem, republicanos teriam vencido quase todas as eleições de 1950 pra cá. Quando questionada como se sentiria se não pudesse votar, ela responde: “Se todo meu gênero perdesse esse direito, eu não teria problema com isso”. Este ano ela também começou a falar que a idade mínima para votar deveria ser de 26 anos, “quando você puder pagar seu próprio plano de saúde”.
O problema das mulheres que votam, principalmente das solteiras (o que engloba todas as mulheres que não têm um homem pra chamar de seu, sejam elas viúvas, divorciadas, solteiras, ou mães-solteiras), é que, segundo Coulter, elas querem “que o governo seja seu marido e lhes dê, você sabe, atendimento pré-natal, jardins de infância, e merenda escolar. Esses não são programas que interessam o Bruce Willis”. (Sabe quem mais odeia o “estado-pai”? O terrorista norueguês que matou mais de 90 pessoas em Oslo no ano passado. Seu manifesto repleto de ideias masculinistas claramente fala nisso).
Como somos egoístas, não? Queremos um governo que gaste o dinheiro dos nossos impostos com saúde para todos, educação pública, gratuita e de qualidade, e creches para crianças e casas de repouso para idosos, para que nós, mulheres, que tradicionalmente nos sacrificamos para cuidar de quem precisa, não fiquemos tão sobrecarregadas. Esses dias saiu uma matéria dizendo que, apesar do nosso salário já representar 41% de toda a renda no Brasil –- ou seja, cada vez mais mulheres trabalham fora -–, os homens seguem sem colaborar em casa. Em uma década, os homens aumentaram o tempo que dispendem por semana aos afazeres domésticos em míseros oito minutos. Nesse ritmo, vamos levar mais décadas para que a divisão sexual do trabalho seja feita do que demoramos para conquistar o voto.
E como são egoístas as eleitoras americanas, não? Elas ficam exigindo que o governo torre o dinheiro dos contribuintes com creches pra criancinhas, desviando dólares do que realmente importa -– promoção de guerras e auxílio para salvar bancos da falência, só porque esses homens de negócios tão competentes de Wall Street causaram uma crise como não víamos desde 1929.
Aliás, não dá nem pra entender por que todas as mulheres americanas não votam logo no Romney, um alfa milionário, ou bilionário, se levarmos em consideração suas contas em paraísos fiscais. Não é esse tipo de homem que instintivamente adoramos?
Ahn, não. O que queremos, ou melhor, vou falar por mim, o que eu quero, a curtíssimo prazo, é que Obama seja reeleito. A médio prazo, que as mulheres cada vez mais tenham uma agenda política voltada para o social. Eu nunca me incomodaria de ser vista como parte do gênero que se preocupa com as pessoas, não com os bancos. E, a longo prazo, quero que os conservadores arranjem insultos novos para xingar as feministas. Esses que eles usam há 160 anos já estão meio batidos.
Disponivel no Blog da Lola
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