por Talita R da Silva A Comissão de Saúde do Senado do Chile aprovou, no dia 6 de setembro de 2011, o projeto de lei que descriminaliza o aborto terapêutico. O Senado chileno posterga desde então sua votação. O Chile permitiu o aborto terapêutico entre 1931 e 1989, quando o ditador Augusto Pinochet (1973-1990) o proibiu totalmente. A interrupção voluntária da gravidez se mantém 19 anos depois da restauração da democracia como um crime punido com três a cinco anos de prisão para a mulher. Junto com o Chile, somente alguns países como Andorra, El Salvador, Filipinas, Malta e Nicarágua penalizam o aborto sem nenhum tipo de exceção. A Organização Mundial da Saúde, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Européia de Direitos Humanos, a Anistia Internacional, o Comitê da ONU contra a Tortura, entre outros, declararam unanimemente que a criminalização do aborto quando há risco de vida para a mãe ou quando a gravidez é consequência de um estupro, constitui ato de tortura que viola os direitos humanos básicos das mulheres. —– Tradução do texto “El aborto y las 10 falacias del mundo conservador” por Karen Espíndola. Publicado no site El Mostrador em 07 de setembro de 2011. Com 12 semanas de gestação, Karen recebeu o diagnóstico de que o feto que carregava em seu ventre tinha uma grave anomalia cerebral. Seu filho Osvaldo e ela viveram um calvário. O menino morreu recentemente, mas Karen levou sua experiência como um exemplo para lutar pelo direito ao aborto terapêutico (em que a vida da gestante está em risco) e por razões médicas. —– Meu filho morreu no último dia 25 de julho, como consequência de uma má formação cerebral grave chamada Holoprosencefalia. Permaneceu conosco por quase dois anos e meio de muito sofrimento para si e para toda a família. Também vivi momentos preciosos e inesquecíveis, e esta perda ainda dói no mais profundo de meu coração. Eu o protegi e amei com toda a disposição de meu ser, mas ele se foi… Durante todo este tempo, expliquei minha situação e pontos de vista sobre a necessidade de legalizar o aborto em casos similares, porque vivendo pessoalmente esta realidade, foi-me possível medir a dor que significa viver uma situação tão íntima quanto trágica. Ainda dói. Expliquei meu caso para que de uma vez por todas reajamos como sociedade e comecemos a nos respeitar em nossos credos e convicções pessoais. Paralelamente (porque não há qualquer contradição), lutava por meu filho e por todas as crianças que lamentavelmente sofrem (ou virão a sofrer) a indiferença de uma sociedade esquizofrênica: aquela que no discurso se proclama como “defensora inflexível” do valor da vida, mas que depois de nove meses, esquece por completo a mulher e a criança nascida. Como exemplo: o atual Ministro da Saúde, Jaime Mañalich Muxi – que não assistiu a nenhuma sessão da comissão de saúde do Senado que está debatendo o tema, e que comparou minha opinião ao regime nazista – não responde a dois ofícios enviados através da Comissão em Defesa do Cidadão, com pedidos de ajuda para as crianças e suas famílias que estão vivenciando uma situação parecida com a minha. Na verdade, todos os auxílios que recebi, econômicos e emocionais, vieram de grupos que apoiaram minha luta (com poucas exceções, como a do Senador Francisco Chahuán). Deixo meu carinho e infinitos agradecimentos a todos aqueles que foram parte de minha vida e da de meu filho durante este período. Se existe o céu, ele será conquistado com ações, não com discursos. Este ano, pela primeira vez desde o retorno da democracia, nosso poder legislativo ousou debater projetos de lei que convidam nossas instituições a legalizarem o aborto em dadas situações, o que significa um grande avanço, considerando que, até agora, todos os projetos de lei sobre o tema foram imediatamente arquivados. E muitas coisas, as quais não sou indiferente, foram ditas. Muitos mitos e lugares comuns falsos me animam a escrever novamente. Referir-me-ei exclusivamente à causa de descriminalização do aborto que tenho defendido, embora alguns destes mitos possam ser aplicáveis a toda a discussão. Tomarei dez lugares comuns que confundem a opinião pública, muitos dos quais refletem uma indiferença profunda acerca da tragédia que significa ser confrontado por uma situação tão dolorosa quanto a descrita por mim. 1ª Falácia: “Eu sou pró-vida; você é uma abortista e assassina” Disse antes, mas acredito que uma parte de nossa sociedade parece não entender – e os meios de comunicação contribuem com seu grão de areia – que os partidários de descriminalizar a interrupção da gravidez (por qualquer motivo) não são contrários à vida; como os autodenominados setores “pró-vida” tentam fazer com que a opinião pública acredite. Na verdade, marcar como assassinos àqueles que acreditam que o Estado deve respeitar a opção (reitero: a opção, não a imposição) de cada mulher que se vê diante de uma gravidez, que coloca em risco sua saúde e implica em sofrimento injustificado (mais adiante explicarei o porque), é uma falácia que não busca argumentar, mas atacar, desqualificar o adversário e encerrar o debate necessário. E se trata de uma falácia porque quem defende a opção da mulher, não o faz por desprezo da vida, mas (muito pelo contrário) o fazemos porque consideramos que permitir a opção no cenário descrito é uma alternativa profundamente mais humana e participativa, uma vez que não é indiferente em à vida do que está para nascer nem à da mãe; e também, porque é a única alternativa que respeita a liberdade de consciência que todo Estado Laico (não religioso) deve respeitar e promover. 2ª Falácia: “A prática do aborto é um ato moralmente condenável” Não restam dúvidas de que diante de situações extremas, como as que dividi com vocês, a decisão de continuar ou interromper uma gravidez é profundamente complexa. Em momentos como esses, passam milhões de coisas em nossa cabeça (por ex. por que comigo?, que mal fiz eu?, qual será a melhor decisão para mim e minha família?). E quando você recebe a notícia de que sua gravidez não é viável, que seu filho não sobreviverá ao parto ou que ele terá uma vida curta, dolorosa e sem capacidade de desenvolvimento como qualquer pessoa autônoma, o mundo cai. Nesse cenário, a moralidade da decisão de continuar ou interromper uma gravidez representa uma situação que dependerá em última instância de nossas profundas convicções e/ou crenças religiosas e, nesse aspecto, o Estado não se encontra capacitado para demandar determinado comportamento. Na verdade, impor que a mulher viva contra sua vontade uma experiência tão angustiante como a que senti na pele (meu filho, eu e minha família) representa sem qualquer dúvida uma espécie de tortura, que busca transformar a mulher – a força – em mártir (Martírio: dor ou sofrimento, físico ou moral, de grande intensidade), atitude esta impensável a todo Estado que respeito pelos direitos humanos de forma plena e harmônica. Contudo, o Estado não pode nem deve impor um moral sobre outro, mas deve deixar que cada qual adote, autonomamente, sua decisão (difícil, seja ela qual for). Desse modo e como o Estado deve ser neutro nestes casos, tão íntimos quanto trágicos, só podemos rejeitar outra falácia: “quando um Estado promulga uma lei que permite o aborto, o que, na verdade se faz não é só permitir o aborto mas também patrociná-lo”. Acredito que não precisamos nos aprofundar neste assunto dada a grosseria do argumento. Finalmente, como para alguns o aborto representa legitimamente um mal (de acordo com suas crenças), argumenta-se que toda mulher que pratica um aborto, mais cedo ou mais tarde, arrepender-se-á, sentirá que fez algo horrendo e em suma, sua dor será um peso que não poderão jamais superar. O padre Francisco Javier Astaburuaga Ossa declara que a mulher sofrerá a “Síndrome Pós-Aborto, que acompanhará esta mãe por toda a vida”. A falácia aqui está evidente porque assume que todo o mundo acredita que a interrupção da gestação é um ato condenável em si mesmo (em termos morais), independentemente das circunstâncias – aquela parte do assunto que os contrários a todo tipo de aborto esquecem – e, principalmente, das crenças de cada um. Somado a isso, a criminalização do aborto sob qualquer circunstância – como só acontece em El Salvador, Nicarágua, Malta, Vaticano e Chile – gera em quem escolhe abortar clandestinamente, desafiando à instituição (algo mais comum do que se crê e divulga) um sentimento óbvio de culpa, mas este não necessariamente desencadeado por conta da moralidade (algo que deve ser assumido individualmente), mas sim por exercer na clandestinidade um ato penalizado por nosso sistema jurídico. 3ª Falácia: “A vida é sagrada” A este respeito, simplesmente me permito trazer as palavras de Carlos Peña: “a vida humana é um valor que interessa a todos nós”, mas esse valor que se concede à vida é algo “prima facie”. No entanto, invocar o valor da vida sob qualquer circunstância, “não é um argumento conclusivo. Outras razões são necessárias”. Pois bem, estas razões adicionais que podem justificar (com argumentos laicos) o atual estado das coisas, não são ouvidas em parte alguma. Muitos argumentam que a santidade da vida é uma premissa à qual todos devemos aderir, à revelia de qualquer contexto. Nas palavras do arcebispo de Concepción, Fernando Chomalí, se nos cabe viver uma experiência como a que descrevi a vocês “tem de abaixar a cabeça diante dos desígnios da vida”, frase que só é possível interpretar como “os desígnios de um ser ou força superior”. E sobre estes “desígnios”, já assinalei que um Estado laico não pode nem deve legislar em benefício de um grupo de pessoas que seguem uma determinada crença religiosa (o que ataca, dentre outras coisas, os direitos à igualdade diante da lei e à liberdade de consciência), portanto não me debruçarei muito sobre isso. Muitos me disseram: “Foi o que lhe coube, que pena… você é tão jovem”. Eu, de minha parte, continuo pensando que a mulher deveria ter o direito de decidir em um momento de tamanha significância para sua vida. A estas alturas, muitos estarão pensando que me esqueci do respeito que merece a vida daquele que está por nascer e que, portanto, não disponibilizei os argumentos que justifiquem sacrificar o valor dessa vida em potencial, mas que, pelo contrário, só me esforcei no doloroso processo que vivem as mulheres que enfrentam situações como a minha. Nas falácias seguintes (4 e 5), aprofundar-me-ei nestes argumentos. 4ª Falácia: “Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados” (Mateus 5.5) Talvez esta seja a essência de toda a discussão. O sofrimento humano implica em um caminho misterioso. A algumas pessoas, as situações dolorosas as podem paralisar, gerar ressentimento, depressões irreversíveis e um amplo etcétera. Para outras pessoas, ao contrário, o sofrimento sempre é uma oportunidade de crescer, amadurecer e ver a vida sob outro prisma, ao que corresponde não evitá-lo, até mesmo considerá-lo desejável. Em geral, nós, pessoas, buscamos a felicidade e evitamos sofrer (algo mais humano deste mundo), ainda que reconheçamos que o sofrimento possa nos fazer crescer. Em resumo, ambas as opiniões não deixam de ter razão (em maior ou menor medida, a depender das vivências e crenças individuais). Mas a pergunta é outra: O Estado pode me obrigar a viver uma realidade tão intensamente dolorosa (a magnitude do que estou tratando é algo que talvez não se possa explicar por meio de palavras), se eu assim não desejar?, O Estado tem autoridade para me dizer que nesta situação altamente trágica, só devo enfrentar a dor de uma determinada forma: continuar a gestação, ainda que seja contra minha vontade? Para Patrícia Gonelle, membro de um grupo autodenominado pró-vida, “com o sofrimento a pessoa pode crescer, dar um giro em sua vida para algo que nos traga sentido (…)”. Para o doutor Jorge Neira (PUC) – que deu sua opinião mais política do que médica sobre o assunto – “continuar com essas gestações, e não abortar, permite aos pais alcançar a paz (…) Aqui é fundamental a parceria, mas parceria-parceria, de corpo, alma e espírito, daquelas que se chamam pela noite e se preparam para dar sentido ao sofrimento. Assim, tranqüilizam-se e alcançam a paz”. Como você pode ver, estas opiniões refletem apenas uma crença: aquela que enxerga somente virtudes no sofrimento; algo desejável a que não temos como escapar (são os desígnios da vida, conforme dito acima). Como venho insistindo, esta opinião é plenamente respeitável, mas em caso algum pode ser obrigatória para quem não enxerga tantas virtudes no sofrimento humano, ou até o enxerga como benéfico, mas não de forma tão extrema e absoluta. Acreditamos que em situações como estas, o ideal é que cada um analise a situação por seu próprio mérito e adote uma decisão livre e informada. Mas isso não é tudo. Ao sofrimento da mulher (e por extensão de toda a família) deve-se agregar uma nova variável; que nos casos de inviabilidade ou má formações cerebrais graves, o ser em gestação não poderá exercer participação como agente moral. Assim, o filho em potencial que, a princípio, merece nossa proteção (porque, também no início, assim interpretamos seu interesse de viver) não tem a capacidade de tomar decisões morais – como consequência de sua irremediável má formação – já que não terá, em sua dolorosa e limitada vida, interesses próprios para desempenhar com autonomia seu próprio projeto de vida (que é o argumento usado por quem se opõe ao aborto em qualquer circunstância). Sobre esse tema, muito clara se torna a visão que tem sobre essa questão um profundo detrator de toda forma de abortos, José Joaquin Ugarte Godoy – professor da Universidad Católica de Chile – segundo ele: “quando o indivíduo vivente tem natureza racional, porque traz ideias que remetem não à aparência sensível, mas sim à essência e ao ser das coisas, quer dizer, tem intelecto – que sempre vá acompanhado da faculdade de querer livremente o bem ou vontade – chama-se pessoa (…) Esta alma intelectual permite que a pessoa se conheça e se domine a si mesma – porque as coisas são dominadas pelo conhecimento – e ser dona de seus atos, tendo assim uma subjetividade, uma interioridade, certo ser para si mesmo; e porque pode a pessoa dominar a si mesma, pode possuir bens externos ao seu corpo, pode ser sujeito de seus direitos. A natureza racional desenha, assim, uma fronteira intransponível entre o homem, senhor de seus direitos, e as coisas, objetos do direito para o uso do homem”. Acredito que, sobre esse ponto, excedem palavras. Pois bem, que o ser em gestação não possa exercer função como agente moral autônomo, implica que o sofrimento que experimente não terá sentido algum para si mesmo e, portanto, o único fator que pode fundamentar uma decisão a esse respeito são nossas crenças e convicções mais íntimas. Então, a dor é dupla. Pessoalmente não tenho palavras para explicar a dor que significa ver um filho sofrer em vão e sem poder fazer nada para remediá-lo. Pensem por um segundo na preocupação que implica qualquer acidente ou enfermidade de um filho e compreendam que estes pensamentos invadiram meus pensamentos e ficaram dando voltas em minha mente todos os dias, desde que recebi o diagnóstico de meu filho. Haverá dor maior do que esta? Dão-se conta da grandeza do que estou dizendo? Por que, então, não conceder a possibilidade de evitar tanta dor humana que é infantil diante de quem alguns dizem querer defender? 5ª Falácia: “O propósito é fazer uma seleção racial em busca da perfeição humana e representa um desprezo a todos nós, incapacitados” Além da falácia anterior, é necessário fazer um adendo: a situação que me tocou vivenciar e que é a que estou defendendo nestas linhas não se referem a qualquer tipo de incapacidade. Como tentei explicar, trata-se de gestações em que aquele que está por nascer é inviável em sua vida fora do útero ou terá uma vida curta, dolorosa e incapaz de se desenvolver como qualquer pessoa autônoma. Sua má formação o impedirá de atuar como agente moral. Pois bem, neste debate, a falácia mais usada nestas situações dizem que não se trata de um aborto terapêutico, mas sim de um aborto eugênico, o que permite dizer que o que se busca, na verdade, é uma seleção racial ao estilo nazista. De fato, o conceito originário da eugenia se relaciona com uma busca a fim de melhorar traços hereditários humanos. Deste modo, se para algumas pessoas é discutível que se fale sobre aborto terapêutico em casos de inviabilidade ou má formação grave do cérebro, também é discutível que se fale claramente sobre aborto eugênico, porque com isso só se confunde a opinião púbica. Como já deixei claro, não há relação entre minha luta e a vida de crianças com Síndrome de Down ou determinada incapacidade física, ou questões raciais – como a cor da pele – para citar alguns exemplos. A discussão deve ser sincera. Sem lugar para falácias como estas, que só buscam angariar simpatia perante o equívoco. 6ª Falácia: “Abrir a porta para a legalização do aborto por questões de saúde implica um caminho sem volta” A este lugar comum, podemos descrevê-lo da seguinte forma: “Se legalizarmos o aborto por uma ou mais razões, imponderavelmente veremos que, com o tempo, permitiremos a interrupção da gravidez a todo instante”. Esta falácia é conhecida como “ladeira escorregadia” e sugere que uma ação iniciará uma cadeia de eventos que culminarão em um evento posterior indesejável. Isso é apenas uma campanha do terror que não oferece qualquer argumento sobre o tema em pauta. No entanto, é conveniente deixar claro que se se decide legalizar a interrupção da gravidez em determinadas situações, é necessário que a norma jurídica seja precisa quanto ao seu alcance (medida legislativa) e sua aplicação, pois esta é a única opção que assegura transparência e coerência entre os argumentos que justificam uma lei e os fatos que justificam a implementação. Devemos ser honestos, sem trapaças ou acobertamentos. 7ª Falácia: “Os diagnósticos médicos podem falhar” Também aqui há uma falácia porque o conhecimento científico existente nos permite obter informações para tomar decisões baseadas na tecnologia e nos conhecimentos disponíveis. Atualmente, a ciência é capaz de diagnosticar a presença de fetos inviáveis ou com má formação cerebral grave desde muito cedo. No entanto, quando se discutem temas relacionados com a inviabilidade fetal ou má formação cerebral grave, aos médicos sempre se faz uma pergunta equivocada: O ser em gestação (sobre)viverá por horas, dias, semanas? Pode ser que um bebê com diagnóstico de anencefalia ou holoprosencefalia (sobre)viva além do prazo estimado – por isso os médicos devem ser muito cautelosos, objetivos e realistas na informação que fornecem aos pais – mas a pergunta que devemos fazer aos médicos é outra: Poderá o ser em gestação desenvolver-se como qualquer pessoa?, se puder sobreviver ao parto: Terá consciência de si mesmo para poder traçar um projeto de vida que lhe trará sentido a esta, a partir de sua subjetividade?, O que nos diz a ciência a respeito disso?. Se nos portarmos assim, o raciocínio é menos egoísta e mais voltado ao ser em gestação e demais envolvidos nesta situação dolorosa. Sobre isso, insisto na pergunta acerca do sofrimento que pode derivar de tais experiências trágicas: Qual o sentido na dor de toda uma família e do próprio bebê (caso sobreviva ao parto) se esta dor será em vão (pelo menos, sob um ponto de vista não espiritual)? Sem dúvida, o assunto dos diagnósticos médicos e complexo, considerando que representa um tema totalmente técnico. Por isso mesmo, é importante que a legislação trace um objetivo claro: obter dos médicos posições científicas, sem viés ideológico. Em outras palavras, não se pede dos médicos que eles tragam suas opiniões sobre a pertinência de interromper (ou não) uma gestação, mas apenas se um caso se aplica ou não à lei. Desta forma, ainda que não estejam de acordo com a possibilidade de interromper uma gestação, os médicos deveriam entender que seu papel é outro, ainda que – por princípios – sempre possam negar-se a participarem da intervenção em si. O importante aqui é que os médicos não confundam sua legítima opinião política com a evidência média existente, que é o que nos interessa. De toda forma, sobre esta falácia tem de fazer um adendo; quem se opõe à idéia de legislar com base em eventuais erros de diagnósticos médicos, deveria reconhecer que sua aversão ao aborto, nestes casos, não é por princípios, mas sim devido a assuntos técnicos. Em suma, tudo que estiver além de um diagnóstico médico devidamente fundamentado em evidências científicas disponíveis resulta da fé – fé nos desígnios de Deus, na esperança de que se realize um milagre ou na dúvida de que a pessoa será ou não capaz de enfrentar esta dura situação – questões de fé e/ou crenças pessoais. 8ª Falácia: “Não se pode legislar para atender à exceção” Muitos dos que opinam – de um lado e de outro – caem na armadilha de fundamentar suas posturas na quantidade (baixa ou considerável, de acordo com o ponto de vista) de gestações que apresentam complicações como as que expusemos. Mas, novamente, esse não é o focoda discussão. O que interessa aqui é outra coisa: O estado pode permitir que se violem direitos fundamentais?, Ou o papel do Estado (respeitar e promover) depende do número de pessoas que possam ser afetadas? Ainda que sejam casos execpcionais, o impacto emocional é altíssimo e machuca toda uma família. Todos nascemos livres e iguais em dignidade e direitos. Pelo menos assim diz nossa Constituição. 9ª Falácia: “Nossos parlamentares não podem nem devem trair suas crenças religiosas no momento de aprovar leis” Esta é um grande falácia que busca prender nossos parlamentares em uma encruzilhada falsa (semelhante àquela em que podem acreditar os médicos, segundo tratado na falácia nº 7) Todo o tempo, os parlamentares devem obrigatoriamente legislar para todos, independentemente dos credos a que eles aderem. Devem respeitar a todos sem exceção. Essa é a única atitude que se concilia com o respeito ao direito à liberdade de crenças, reconhecido por nossa Constituição. Como é evidente, a lei não nos pode obrigar a assistir à missa todos os domingos ou a nos casarmos na igreja; para citar poucos exemplos. Não é a mesma coisa cometer um pecado e cometer um crime. Mas parece que muitos políticos não entendem algo tão básico a um regime democrático. Por exemplo, em um debate organizado pelo senador Mariano Ruiz-Esquide, em janeiro de 2011, o candidato Mario Venegas Cárdenas (democrata cristão) assinalou que “o outro não costuma usar na vida sua condição de católico ao elaborar leis; não sei como poderia fazê-lo durante o cargo”. No mesmo evento, o ex-Ministro da Saúde, Osvaldo Artaza, também caiu na armadilha desta falácia, quando disse que prefere não opinar sobre a legislação acerca da interrupção da gestação por causas determinadas, porque lhe parece impossível “tirar o preconceito religioso”. A ilusão de que não existe aqui um dilema ético é falsa. Qualquer pessoa tem o direito de acreditar em qualquer divindade, na natureza ou no que for. Pode, também, fazer todo o possível para converter o maior número possível de pessoas a sua moral. Mas isso é muito diferente de utilizar a lei para obrigar alguém a seguir tais dogmas. Digo mais, ainda que exista uma crença majoritária em um país, não é constitucional legislar em benefício desta. Como já sabemos, os direitos fundamentais estão fora dos caprichos da maioria. Imagino que nossos parlamentares saibam o que implica viver em um Estado laico, por isso é esperado que antes de opinarem e votarem sobre este tema em particular visualizem a armadilha ou encruzilhada falsa em que podem cair. Em resumo, espera-se que o debate se faça com argumentos laicos, que é o que se busca em uma democracia. 10ª Falácia: “O direito à vida sempre se sobreporá a qualquer outro direito fundamental” Sobre o assunto, o senador Chahuán – a quem respeito e admiro – disse: Quem defende, como eu, a vida desde o momento da concepção não o faz por razões religiosas, faz isso porque acredita nos direitos do ser humano e aí há um conflito entre os direitos reprodutivos da mulher e o direito daquele que está para nascer, que não tem quem o defenda. E portanto, há um choque de direitos e temos de resolver a partir disso. Poderíamos fazer muitos comentários a partir desta fala, mas interessa ao lugar-comum que comentamos realizar uma discussão prévia sobre o juízo de valor que o senador assume como um juízo de fatos: que aquele que está para nascer não é só um sujeito sob proteção jurídica, mas também um sujeito de direito, como qualquer pessoa – desde o momento da concepção. Só se admite que este juízo de valor é obrigatório para todos nós (estejamos ou não de acordo), se tratarmos de uma colisão de direitos. Ainda que aceitemos tal premissa, existem muitos direitos fundamentais em jogo, sobre os quais devemos ponderar adequadamente: a vida e a integridade física e psíquica; a liberdade de consciência, a igualdade diante da lei, entre outras coisas. Sobre o direito à vida, é claro que este é o direito fundamental mais relevante para todos. A razão para tal? Somente estando vivos poderemos nos desenvolver enquanto pessoas, exercermos nossos direitos, realizarmos nossos projetos e alcançarmos nossas metas. Em resumo, o direito à vida é o direito mais importante porque – como é lógico – sem este é impossível alcançarmos o projeto de vida de nosso interesse. Pois bem, nos casos de inviabilidade fetal ou má formação severa do cérebro, os danos impedem que o ser que poderá nascer se desenvolva como um agente moral autônomo, logo o argumento do direito à vida como primordial em quaisquer circunstâncias fica interditado, porque não é justificável perante os fundamentos que o sustentam. Conforme dito acima, qualquer análise no contexto de colisão de direitos possibilitaria concluir que permitir (não impor) a interrupção da gestação devido à causa comentada é a única alternativa que permite resolver de maneira plena – desde a perspectiva dos direitos fundamentais – situações complexas como estas. Porque diante de casos como estes, a única instância a que devemos ser fieis é a nossas convicções e crenças. Espero que nestas linhas tenha abordado, como meu testemunho e opiniões, o debate necessário que nossa sociedade deve enfrentar e não mais varrer para debaixo do tapete. Como diriam em qualquer igreja deste país: É justo e necessário! Fonte: Blogueiras Feministas Disponivel em http://catolicas.org.br/noticias/conteudo.asp?cod=3380 :: |
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