Samir Oliveira
A Brigada Militar absolveu uma policial acusada de ter cometido racismo contra dois estudantes africanos no dia 17 de janeiro deste ano. O Inquérito Policial-Militar (IPM) instaurado no dia 26 de janeiro foi concluído no último sábado (7) e considerou que a soldado adotou “uma abordagem dentro da técnica” da corporação.
Sagesse Ilunga Kalala, da República Democrática do Congo, e Tibulle Aymar Sedjro, do Benin, estavam em Porto Alegre desde março de 2011 estudando português na UFRGS – etapa obrigatória de um convênio entre o governo brasileiro e seus países, que os direcionou para a Universidade Federal de Rio Grande, onde atualmente estão cursando Biologia e Oceanologia, respectivamente.
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- Detenção de africanos é investigada pela Brigada Militar e Polícia Civil.
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No dia 17 de janeiro, eles estavam dentro de um ônibus da linha Campus Ipiranga se dirigindo ao Centro da Capital, onde encontrariam uma amiga para irem até a sede da Polícia Federal renovar seus vistos de permanência no país. Na ocasião, perceberam que uma policial militar fardada não parava de olhar para eles, que conversavam entre si em francês.
Subitamente, a soldado mandou que o motorista parasse o ônibus, apontou a arma para os dois africanos e mandou que descessem do coletivo com as mãos na cabeça. Quando Tibulle se abaixou para pegar seu celular, que havia caído, a policial teria engatilhado a arma.
Na saída do ônibus, que havia parado próximo ao parque Farroupilha, na Avenida João Pessoa, havia três viaturas da BM para recepcionar os estudantes – já que a policial havia pedido reforços. Sagesse e Tibulle foram encostados no ônibus, revistados, algemados e levados para o posto da Brigada Militar na Redenção – de onde foram liberados após os policiais perceberem que se tratava de dois estudantes estrangeiros.
Dentro do posto, Sagesse assegura que um policial negro teria apontado para sua própria pele e dito: “Vocês não sabem que isso no Brasil sempre aconteceu e vai acontecer de novo?”.
Indignados, os dois expuseram o caso na mídia e registraram uma denúncia na 10º Delegacia de Polícia Civil, que ainda investiga o caso. Com a divulgação, a BM instaurou um inquérito no dia 26 e, na época, o comandante-geral em exercício, coronel Altair de Freitas Cunha, se reuniu com Sagesse e Tibulle e pediu desculpas pelo ocorrido.
“A abordagem foi técnica”, defende major
O comandante do 9º Batalhão da Brigada Militar, major Renato Maia, conduziu o Inquérito Policial-Militar que investigou a conduta dos envolvidos na detenção de Sagesse Ilunga Kalala e Tibulle Aymar Sedjro. Em conversa com o Sul21, ele informou que a conclusão do IPM foi de que a policial que apontou uma arma para os dois dentro de um ônibus agiu de forma “técnica”.
“Não foi constatado indicio de crime por parte da soldado. A abordagem foi dentro da técnica. Ela desconfiou da postura desses dois indivíduos, até porque ela na entendia o que eles estavam falando, solicitou apoio e fez uma abordagem dentro da técnica. Era uma policial fardada. Em desconfiando, faz a abordagem”, justificou o oficial.
Apesar de absolver a principal envolvida na denúncia, o IPM incrimina outros dois policiais – mas não por qualquer conduta incorreta ou violenta em relação aos detidos. O inquérito indicia dois brigadianos por falso testemunho, já que eles estavam na ação e teriam declarado que não haviam participado do fato. O IPM já está nas mãos da Justiça Militar e será apreciado por um promotor, que ainda pode acusar a soldado que motivou a ação, caso entenda que ela cometeu alguma ilegalidade no ato.
O corregedor-geral da Brigada Militar, coronel João Gilberto Fritz, não quis se manifestar sobre o caso, alegando que o inquérito foi feito pelo comando do 9º batalhão, não pela Corregedoria. “Tenho que ver o fato concreto e analisar os autos. Sem isso, não posso me manifestar”, explicou.
Apesar de a policial investigada pertencer ao 21º Batalhão – que faz o policiamento no extremo sul de Porto Alegre -, o IPM ocorreu no 9ª Batalhão, que abrange a área onde o fato aconteceu.
A reportagem do Sul21 tentou contato com a assessoria do comandante-geral da Brigada Militar, coronel Sérgio Abreu, que repassou a demanda para a Corregedoria. A Secretaria Estadual de Segurança Pública também foi procurada, mas a assessoria informou que o secretário Airton Michels (PT) “não comenta um procedimento administrativo interno da Brigada Militar”.
“Não podemos deixar que acabe assim”, reclama Sagesse
Atualmente, Sagesse Ilunga Kalala, da República Democrática do Congo, está estudando Biologia na Universidade Federal do Rio Grande (Furg). Em conversa por telefone com o Sul21 ele ficou sabendo da decisão do inquérito da Brigada Militar e disse que não irá aceitar a impunidade da soldado que iniciou a abordagem dele e o seu amigo Tibulle Aymar Sedjro.
“Nos algemaram e nos levaram ao posto policial, deram uma gravata no meu amigo e vão falar que não foi nada demais? Isso não é normal”, indigna-se, ressaltando que considera a policial culpada. “Ela é culpada. Além de tudo, não nos deixou ir embora depois de nos tirar do ônibus”, lembra.
Durante todo o momento em que foram abordados, os estudantes tentavam entender a situação e explicar que eram estrangeiros, mas contam que a policial apenas mandava eles calarem a boca. “Foi a primeira vez que um policial apontou uma arma para a minha cabeça. Não podemos deixar que isso acabe assim”, comenta.
O presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krischke, recebeu a denúncia de Sagesse e Tibulle e prestou auxílio aos jovens. Ao saber do resultado do inquérito da Brigada Militar, ele classificou a investigação como uma “palhaçada”. “A conclusão desse inquérito evidencia que o despreparo não é só nos soldados, mas também da oficialidade da BM. Chegar a uma conclusão dessas num evidente caso de racismo é certificar o despreparo”, critica.
“É uma decisão corporativa”, critica Marcos Rolim
O especialista em Direitos Humanos e Segurança Pública Marcos Rolim acredita que a decisão da Brigada Militar de absolver uma policial que teria adotado uma conduta racista ao abordar dois estudantes africanos em Porto Alegre foi “corporativa”. Ele aponta que o inquérito deveria ao menos explicar por que ela desconfiou dos detidos.
“A justificativa para a absolvição deveria exigir que essa policial explicasse por que suspeitou que essas pessoas estivessem praticando algum delito. Era uma suspeição fundada no fato de eles serem negros e estarem vestindo roupas aparentemente caras. É nitidamente uma postura preconceituosa”, avalia.
Rolim lamenta que não seja um caso isolado no Brasil e no Rio Grande do Sul. “Essa prática não é novidade. A diferença desse caso é que o exagero aconteceu num espaço público. Mas em qualquer vila de Porto Alegre é possível constatar que isso infelizmente é algo normal”, comenta.
Ele questiona o papel das corregedorias em organismos como Brigada Militar, Polícia Civil e Superintendência de Serviços Penitenciários (Susepe) – que são formadas pelos servidores desses próprios setores. “Quem hoje é corregedor-geral da BM sabe que no futuro pode vir a ser subordinado de um sujeito que hoje ele investiga”, compara.
Rolim sugere que uma das formas de enfrentar o problema seria com a criação de uma corregedoria única para toda a segurança pública, com carreira própria e desvinculada da hierarquia militar. O especialista considera que, se isso não ocorrer, “o corporativismo continuará imperando”.
Ele também critica a postura da Secretaria Estadual de Segurança, que não quis se manifestar sobre o caso. “É uma decisão política da Secretaria. O Michels fez a opção tradicional dos secretários de Segurança: ele cuida das suas coisas e quem cuida da polícia são os policiais”, observa.
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