NA SOCIEDADE DO CADA UM POR SI E NINGUÉM PELA TRAVESTI


A transgênero Chrissy em entrevista dias depois do ataque

É o assunto do momento: o vídeo de uma transgênero que foi atacada por duas moças (uma de apenas 14 anos; outra de 18) num McDonald's em Baltimore, no estado americano de Maryland. As imagens, feitas através do celular de um dos funcionários (que foi demitido pela empresa) na segunda passada, são realmente perturbadoras. (Atenção: o título acima é mais pra rimar mesmo. A palavra transgênero engloba transexuais e travestis. Aparentemente, a transgênero agredida era transexual. Saiba adiferença. E, antes de eu continuar, sim, é revoltante que as agressoras sejam mulheres e negras. Mas infelizmente só ser parte de minorias não faz ninguém menos preconceituoso).
Só um gerente tentou afastar as garotas que esmurravam e chutavam a transexual. Os outros funcionários apenas assistiram à cena (dá pra ouvir algumas risadas), sem fazer nada. Mais pra frente no vídeo uma senhora interfere, impedindo que o ataque continue. Só quando a trans tem (ou finge ter, de acordo com o rapaz que filmou o vídeo) uma convulsão é que as moças são postas pra fora da lanchonete –- e isso para que não sejam presas pela polícia, que estava a caminho.O rapaz que fez o vídeo depois justificou no Facebook, “Aquela não era uma mulher que estava sendo espancada. Era um homem, vestido de mulher”. Também foi dito que a trans era prostituta, então tudo bem (lembra dos filhinhos de papai no Rio que espancaram uma empregada doméstica num ponto de ônibus e mais tarde disseram que pensavam que era uma prostituta? Ou os riquinhos de Brasília que queimaram um índio achando que ele era um mendigo? Igual). 
Parece que o que originou o ataque das duas jovens foi que a transexual (igualmente jovem, de 22 anos) usou o banheiro feminino, o que rendeu uma discussão verbal. Algo banal assim.
Quer dizer, banal pra qualquer pessoa de bom senso. Pelo jeito, pra muitos héteros, a principal preocupação com transexuais e travestis é “Oh meu deus, que banheiro ele[porque, pra um hétero, se alguém nasceu homem, nunca deixa de ser homem] vai usar?!”. Eu lembro de um período em que vivi nos EUA e, sei lá por que cargas d'água, só se falava nisso. E eu pensava, pô, até parece que banheiro público é realmente público. Eu tenho um vaso sanitário e uma porta só pra mim, e não dou a mínima se a pessoa ao meu lado nasceu mulher, virou mulher, vai virar mulher, ou apenas se veste como mulher. Isso não interfere em nada na minha vida. Não interfere nem na minha ida ao banheiro.
É claro que atacar uma transgênero constitui crime de ódio. Ela foi atacada apenas por ser trans. Crimes de ódio contra transexuais e travestis são muito comuns. Fiquei chocada outro dia ao ver noConexão Repórter (sobre homofobia) como as travestis são rotineiramente ameaçadas. Ano passado 110 delas foram mortas enquanto se prostituíam. É no contato com o cliente que são esfaqueadas, atropeladas ou alvejadas por tiros. Diz a reportagem: “Constatamos que não há travesti que não tenha relatos de violência motivados pelo preconceito”. E não é preciso nem dizer que pra essa gente não existe proteção policial. Pelo contrário, aliás.
Não sei ao certo se a indiferença dos clientes e funcionários do McDonald's (teria sido diferente em outra loja?) diante do ocorrido tenha sido apenas pela vítima ser transexual. Pra ser franca, numa única (e espero que última) vez na vida me meti numa briga física. Eu tinha 14 ou 15 anos e estava num fliperama em Búzios. Uma mulher, adulta, que tinha sido empregada na casa dos meus pais, e demitida por um suposto furto, já entrou no fliperama me batendo. Seguiu-se uma briga feia, com nós duas rolando no chão e uma arrancando o cabelo da outra e se arranhando. Demorou uma eternidade até que alguém nos apartasse. Naquela época (antes da metade dos anos 80) não havia celular, e muito menos celular com câmera. Se houvesse, nossa briga estaria no YouTube em questão de minutos. Colocada lá por alguém que preferisse filmar do que encerrar a briga.
Então não acho que seja de hoje que as pessoas ficam insensíveis e distantes diante da tragédia alheia. Eu já fui assaltada à plena luz do dia por um grupo de trombadinhas na saída de um metrô em SP. Todo mundo passava, olhava, e ninguém se intrometia. As pessoas acham que aquilo não têm nada a ver com elas. É o mesmo princípio do velho (e altamente danoso) “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” que a gente conhece tão bem.
No entanto, se alguém é agredido dentro de um estabelecimento comercial, esse estabelecimento -– no caso, o McDonald's -– tem responsabilidade pela segurança de seus clientes. Imagino, inclusive pelo relato do rapaz que filmou a cena, que se fosse uma outra mulher sendo atacada, e não uma transexual, os funcionários teriam interferido. E se você fosse um(a) cliente lá, o que teria feito? No mínimo o óbvio, certo? Que é chamar a polícia imediatamente. (Agora lembrei da moça que foi mantida em cativeiro durante anos na Áustria. Quando ela conseguiu fugir e pediu ajuda, as pessoas se negaram a fazer uma mera ligação pra polícia).
Ano passado falei de uma experiência feita num programa de TV americano chamado What Would You Do? (O Que Você Faria?). Uma mulher com marcas de violência doméstica entrava num restaurante, e logo depois vinha um homem, que passava a ameaçá-la e humilhá-la. Não fez grande diferença a atriz ser branca ou negra -– em ambos os casos clientes tentaram defender a vítima. Mas a história foi completamente diferente dependendo da roupa que a atriz vestia. Se ela usava roupas mais “ousadas”, @s clientes a sua volta pensavam que ela era prostituta e o agresssor, um gigolô. E não se metiam. Apenas pela roupa que a mulher estava vestindo, já faziam todo um julgamento de valor a respeito dela. E decidiam se ela era ou não digna de ajuda e compaixão.
Pelo jeito, funcionários e clientes fizeram esse mesmo julgamento no McDonald's em Baltimore, na semana passada. E chegaram à conclusão que transgêneros não merecem piedade. 

0 comentário(s):

Postar um comentário

Deixe sua sugestão, crítica ou saudação juntamente com seu contato.

 

© 2009-2012 movimento contestação