A mídia local, a vigilância e a disciplina: o exemplo da Tríplice Fronteira


15JUN
O artigo a seguir é uma colaboração especial de João Victor Moura*
A tríplice fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai é noticiada como uma das áreas mais conturbadas da América do Sul. Quase sempre em efervescência política, é palco de greves, discordâncias diplomáticas e desavenças jurídicas. É um local onde aquilo que é decidido nas altas cúpulas governamentais toma forma, existe materialmente – como o combate ao contrabando e ao tráfico de drogas, o estabelecimento de taxas alfandegárias e a negociação de taxas energéticas.
São três as cidades que formam a Tríplice Fronteira, dividida pelos rios Iguaçu e Paraná: Foz do Iguaçu (Brasil), Ciudad Del Este (Paraguai) e Puerto Iguazú (Argentina), com uma população de 700 mil habitantes, aproximadamente. A região é conhecida por seu intenso fluxo comercial, por conta da vinda dos chamados “sacoleiros” e turistas em busca dos preços mais baixos do lado paraguaio. Além disso, o turismo também movimenta a região, tendo as Cataratas do Iguaçu e a Usina Hidroelétrica de Itaipu – uma das maiores do mundo – como pontos de visitação principais.
A mídia local é constituída por 73 veículos de comunicação (levando em conta as três cidades), mas apenas dois jornais diários em Foz do Iguaçu. O maior deles é a Gazeta do Iguaçu, carinhosamente apelidada de Gazetinha.
Em um estudo feito nas notícias da Gazetinha durante o ano de 2006 fatos interessantes para uma leitura midiática da região foram encontrados. O mais interessante toca no tratamento dado aos paraguaios e às regiões periféricas de Foz.
O que se vê, são os conceitos de “disciplina” e de “vigilância” de Michel Foucault postos em prática. Para o autor, a disciplina é uma “tecnologia política”, e os nossos jornais ratificam essa visão.
O PANÓPTICO    
Um dos conceitos mais famosos do filósofo francês, senão o mais famoso é o do “panóptico”. Pan(total)-óptico(visão) foi um termo baseado num tipo de prisão construída em círculo, com uma construção no centro. Por meio da luz, solar ou artificial, quem estivesse na parte central poderia observar tudo que se passa nas celas, na parte exterior, sem que os presos possam enxergar quem os vigia. Ou seja, tal instrumento permitiria uma vigilância constante de todos os presos e também afirmaria a presença desse poder sem que ele tenha um corpo, silhueta. O poder torna-se invisível para o condenado, que não pode mais visualizá-lo. A dúvida, suscitada pelo desconhecimento, disciplina o condenado.
O processo de panoptização da sociedade ganha força com o passar dos séculos XVIII e XIX, e aos poucos sai de partes localizadas da sociedade, como escolas, quartéis e penitenciárias para perpassá-la, atingí-la globalmente.
Assim, a disciplina não ocorre somente pela punição direta, mas sim nas demonstrações de poder indiretas, que possibilitam a ideia de vigilância a todo o momento, exercido por diversas instituições. Na sociedade contemporânea podemos considerar que outro elemento se une a essas instituições, os meios de comunicação.
A MÍDIA LOCAL, A VIGILÂNCIA E A DISCIPLINA
Baseando-se nas matérias da Gazeta, podemos dizer que não raro, nas notícias da editoria Polícia, a correlação Paraguai-Violência é feita. É usual a conexão entre as mortes ocorridas em Foz à proximidade com o país vizinho. Das matérias veiculadas no caderno Polícia em 2006, 378 fazem algum tipo de menção ao Paraguai – média de mais de uma menção por dia.
Algumas matérias merecem destaque na editoria de Polícia. O que se pode perceber são notícias que frequentemente isentam a polícia de culpa nas ações criminosas da cidade, e o deslocamento da responsabilidade pelos crimes na localização geográfica da cidade de Foz do Iguaçu e, em decorrência disso, nos países e moradores da tríplice fronteira.
O esforço em isentar o órgão policial aparece em diversas notícias analisadas. Na matéria veiculada no dia 11 de julho “Seis pessoas são mortas em 24h” retira-se a responsabilidade da polícia logo no subtítulo: “Apesar do esforço da polícia, nenhum dos assassinos foi localizado”.
A linguagem de diversas notícias também é diferenciada para os órgãos policiais. Em diversas matérias analisadas os agentes de Polícia são descritos como “servidores”. Tal benevolência não se estende aos suspeitos, normalmente descritos como “marginais” ou “criminosos”. O que o jornalismo faz, em diversos casos policiais, é apenas reproduzir as informações dadas pelas fontes oficiais. Não somente reproduzindo as notícias, como também o enquadramento dado por tais órgãos. Normalmente, um enquadramento de marginalização do favelado, do fronteiriço e do paraguaio. A vigilância feita pela polícia sobre tais áreas resulta em prisões, já a vigilância jornalística reproduz o poder e a disciplina dos órgãos oficiais, hierarquizando o sistema, desvalorizando e desqualificando o outro.
Para manter a disciplina e as relações de poder instituídas o jornal trata, por exemplo, do problema de saúde local como algo causado pelos brasiguaios. A manchete do dia 22 de junho de 2006 traz esse tratamento: “Brasiguaios sobrecarregam sistema de saúde em Foz”. Mais abaixo, no subtítulo, lê-se: “Dos 600 mil atendimentos anuais na cidade, mais de 180 mil são a brasiguaios e a Paraguaios”. No fim da matéria lê-se: “A exigência da documentação como o cartão SUS, do comprovante de residência e documento pessoal passa a ser exigida a partir desta quinta-feira (22). Pacientes não residentes em Foz, exceto turistas, não serão atendidos.”
Há, claramente, uma hierarquização dos cidadãos em três tipos: os moradores e os turistas; os brasiguaios; e os paraguaios.
Ainda em notícias que fazem referência à saúde pública e aos brasiguaios, outra matéria, do dia 08 de julho, serve de exemplo: “‘Fui bem atendida’, diz brasiguaia que deu à luz em posto”. Na matéria, a réplica da prefeitura e dos órgãos públicos tem maior destaque que a perda da criança, mas outro aspecto chama a atenção. Depois de a brasiguaia assumir que foi bem atendida, o jornal relembra os: “vultosos investimentos que o sistema de saúde de Foz vem recebendo. É o setor que recebeu mais atenção, justamente por se tratar de uma prioridade para o governo Paulo Mac Donald e apresentar um dos maiores déficits no serviço público quando o prefeito assumiu o cargo, em janeiro de 2005. Toda melhoria implementada [...] promoveu um salto na qualidade do serviço. A capacidade de atendimento, porém, não conseguiu atender à demanda reprimida por tantos anos de descaso e má vontade política”.
Evidencia-se um viés opinativo do texto que, pelo menos em teoria, seria basicamente informativo, noticioso. Num relato empírico, sem o uso de dados estruturais que comprovem a “má vontade política”, o jornal dá a ideia de avanços capitais no sistema de saúde, com vultosos investimentos feitos pela administração pública. Dentro de uma notícia que trata de problemas de saúde o jornal ameniza a culpa dos órgãos públicos, isenta-os. Além disso, aproveita-se desse espaço para agir à favor desse poder, relembrando os avanços conduzidos por tal. Nesse caso o jornal torna-se instrumento para se exercer o poder.
EM RESUMO
A recorrência dos termos “Paraguai” de forma pejorativa e os diversos casos de adulação e/ou amortecimento dos órgãos policias tendem a definir o jornal como instrumento de poder e disciplina, principalmente quanto à constante vigilância imposta à nação vizinha. Não raro o Paraguai e os paraguaios são vistos como desordeiros e criminosos, no plural. Há, visivelmente, uma generalização imposta, que hierarquiza a sociedade, diminui paraguaios em relação aos brasileiros (aqui considerando os brasiguaios como brasileiros); diminui brasiguaios em relação aos brasileiros; moradores da periferia em relação à classe média.
Além disso, o jornal muitas vezes apresenta matérias em que ficam evidenciados as ações do poder, como os casos apresentados neste artigo que envolviam o poder público municipal e a polícia, de regra elogiados em seus trabalhos. Isso retira do jornal, como órgão de imprensa, a função de vigilância do poder público para informar a população. O jornal torna-se meio de propaganda do poder instituído e torna a vigiar outras áreas já extremamente vigiadas, como as favelas, periferias e as cidades da fronteira, agindo de forma disciplinadora. Algo que, infelizmente, pode ser observado em diversos outros periódicos do país.
*João Victor Moura é estudante de jornalismo na UFSM e integrante da redação da Revista O Viés.

0 comentário(s):

Postar um comentário

Deixe sua sugestão, crítica ou saudação juntamente com seu contato.

 

© 2009-2012 movimento contestação