GUEST POST: SEJA FEMINISTA, ORAS! (DIVISÃO DO TRABALHO DOMÉSTICO JÁ)


Como todo mundo sabe, a profissão de empregada doméstica não é muito frequente nos países ricos. Lá é caro ter empregada, porque o salário de uma não é assim tão distante do que ganha um médico, por exemplo. Nos EUA e em partes da Europa, algumas famílias de classe média até conseguem ter empregada, mas contratando imigrantes ilegais. Ou seja, estamos falando de uma profissão que só se mantém através da exploração de uma classe social por outra. No Brasil, um dos países mais desiguais do mundo, 17% das mulheres trabalham como empregada doméstica. É uma herança escravagista nossa que não deveria orgulhar ninguém, muito menos medir status social. Não há dúvida alguma que, quando e se houver distribuição de renda, a profissão de empregada estará fadada a senão desaparecer, pelo menos não ser a mais comum entre as brasileiras. Em outras palavras, se a sociedade melhorar (e imagino que tod@s queiramos que a sociedade melhore), o seu privilégio de poder explorar o trabalho de outro ser humano estará com os dias contados.
A meu ver, a questão das empregadas domésticas é o calcanhar de Aquiles do feminismo nos países em desenvolvimento. Muitas feministas, como eu, são de classe média. Mas têm empregada e defendem com unhas e dentes o seu privilégio (que mal veem como privilégio) de ter empregada. É uma das ocasiões em que a defesa de classe (média) fala mais alto que a defesa das mulheres. Toda vez que publiquei algum texto cutucando essa ferida constatei que ser de classe média é mais importante, pra tanta gente, do que as lutas das minorias. E lógico que as pessoas que aparecem aqui pra dizer como pagam e tratam bem sua empregada doméstica devem desconhecer a estatísticade que apenas 26% d@s empregador@s cumprem as leis trabalhistas. A julgar pelo maravilhoso mundo da classe média, empregadas domésticas têm um emprego de sonho. Quem não seria empregada se pudesse? 
Como ontem foi o Dia Nacional das Trabalhadoras Domésticas, pedi pra Niara, jornalista que tem o ótimo blog Pimenta com Limão e que já nos brindou com um comovente guest post sobre seu filho, que escrevesse sobre o assunto. Apesar de Niara ter condições de contratar uma empregada, ela crê que seu feminismo e sua sede por justiça social devem ficar acima do seu privilégio de classe. Eu acredito nisso também, e tento viver de acordo com minhas convicções. Se sou contra a exploração dos pobres pelas classes abastadas, de negros por brancos, de mulheres por homens, também tenho que ser contra a exploração de mulheres pobres por mulheres de classe média. Ah, e isso não isenta, de forma alguma, os maridos de classe média. Dizer que contratar empregada é um assunto de mulheres é uma das formas de desvalorizar o trabalho doméstico e de perpetuar a divisão do trabalho. Não adianta fingir que não é com vocês, não. A Niara explica isso muito bem a seguir.

Antes de começar a falar sobre o trabalho doméstico vou levantar algumas premissas que norteiam meu pensamento e, portanto, meu raciocínio para poder analisar o trabalho doméstico como é realizado hoje.
O surgimento do patriarcado e da opressão de gênero se deu no momento em que os grupos sociais deixaram de ser nômades e o trabalho passou a ser dividido sexualmente. Até então a humanidade se organizava em grupos matricêntricos (não matriarcais). As mulheres precisavam ficar mais próximas de sua prole e coube-lhes o trabalho no âmbito doméstico, privado, a coleta de frutas e a criação de pequenos animais. Aos homens, em função da força física, coube a caça, o trabalho pesado da agricultura que logo se desenvolveria e a criação de animais maiores. Mas o fator decisivo na opressão de gênero ocorreu quando o homem descobriu seu papel na reprodução humana, até então desconhecido.
Está claro que o fato da humanidade deixar de ser nômade, a divisão sexual do trabalho e a descoberta do homem de sua função na procriação foram fundamentais para o surgimento da propriedade privada juntamente com o controle sexual da mulher. Afinal os homens, agora machos provedores, precisavam ter certeza de sua descendência para garantir a herança de seus bens.
Conhecer a nossa história nos ajuda a entender os meandros de nossa opressão. Mas claro que a humanidade evoluiu, se modernizou, vieram os meios de produção, o acúmulo do capital ― que advém do trabalho, é sempre bom lembrar ― e as mulheres sempre ali, no seu mundinho privado, exceto pelas chamadas pioneiras e revolucionárias que nunca se importaram com rótulos ou com quão árdua fosse a luta desde que não ficassem numa situação de submissão ad eternum.
Mas assim como o surgimento da opressão de classe se confunde com a opressão de gênero e se sustenta nela, a luta das mulheres por sua libertação também. Se por um lado a violência sexista é ampla e democrática, no restante da vida a opressão de gênero é infinitamente mais leve para as mulheres burguesas. Enquanto as operárias trabalhavam na fábrica e ao chegar em casa precisavam dar conta do trabalho doméstico ― já que a divisão sexual permanece ―, as mulheres burguesas contam com o auxílio de outras mulheres que iam fazer o "seu" trabalho.
Estou colocando dessa forma para explicitar que a origem do problema está na divisão sexual do trabalho, uma vez que nós mulheres conquistamos o direito ao trabalho no espaço público mas não conseguimos dividir o trabalho no espaço doméstico.
É nítido onde quero chegar. Ter uma empregada doméstica ― posto ocupado em sua quase totalidade por mulheres e em sua ampla maioria por mulheres negras ― é coisa da burguesia. E essanossa classe média, que não se cansa de assimilar valores burgueses e imitar seus costumes, no primeiro degrau de ascenção social, na primeira oportunidade contrata logo uma empregada doméstica. É status social.
Cômodo, não? Para se livrar do "dever" do trabalho doméstico que não é dividido igualitariamente entre os habitantes de uma casa, a mulher que ascende socialmente trata logo de explorar o trabalho de outra mulher em clara desvantagem social para limpar a sujeira produzida por ela e pelos habitantes de sua casa. Nada mais grotesco e senso comum. Sem falar na opressão racial diretamente embutida nesta relação e na sua origem escravagista.
Costumo dizer "Eu limpo minha sujeira" para salientar que precisamos é discutir a divisão sexual do trabalho. Eu, enquanto feminista, preciso aprender a negociar a divisão do trabalho doméstico com minha família e os habitantes da minha casa. Porque explorar o trabalho de uma mulher em clara desvantagem social e racial não é solução. Assim como defender meus privilégios classemedianos pequeno burgueses não me isenta da cumplicidade e participação ativa na opressão dessas mulheres.
É tão tosco manter alguém para limpar a sujeira produzida por outros que daqui a pouco organizarei protestos com o mote "LIBERTE SUA EMPREGADA DOMÉSTICA!". Grotesco por grotesco, fico com a luta por justiça.
Valorizar o trabalho doméstico, dignificá-lo, passa justamente por assumi-lo. Para a legião de burguesas, pequeno burguesas e classemedianas que reagirão a esse texto com uma vontade súbita de se tornarem faxineiras, digo: Se limpar a sujeira da TUA CASA é tão digno assim, FAÇA VOCÊ MESMA! Está pesado, difícil, não tem tempo? A modernidade e a tua falta de habilidade em negociar o trabalho doméstico com tua família não pode servir de desculpa para a exploração de outra pessoa, principalmente de outra mulher. Seja feminista, oras! Lute pela tua libertação e pela libertação daquelas que ainda não adquiriram consciência de gênero.

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