Comentários sobre o livro 'Mulher sem culpa'

FEMINISTAS MENTEM OU LIVRO MENTE SOBRE FEMINISMO?

Semana passada duas leitoras, a Camila e a Mariana, me pediram pra explicar um livro que acabou de ser lançado, Mulher sem Culpa, de uma tal de Carrie Lukas. Na realidade, a pergunta que as duas me fizeram foi “Que p#$/%!a é essa?!”. Porque, né, olha só a descrição do livro que está em todos os meios de divulgação:

O feminismo prometeu às mulheres que elas poderiam ter tudo: uma carreira maravilhosa, igualdade de condições com os homens, prazer e liberdade sexual sem compromisso. Disse a nós que os homens não eram assim tão necessários, e que a ideia de ser mãe e dona de casa era para as fracassadas profissionalmente. Porém, o que se observa é que a mulher está sobrecarregada, angustiada e confusa com seus desejos legítimos, que muitas vezes contrariam a "modernidade" da condição feminina atual. Neste livro (politicamente incorreto), a autora corrige as mentiras e os equívocos que as mulheres têm ouvido das alas feministas mais radicais, e finalmente dá um sopro de alívio para que a mulher possa fazer suas escolhas sem culpa, e ser feliz com elas na sociedade moderna.

Se alguém ler o troço, me avise, que não tenho vontade nenhuma. Esse discursinho eu conheço, sinceramente, desde que era adolescente. Até anotei num dos meus diários da época (devia ter 13 ou 14 anos) a reclamação de uma professora que eu gostava muito, mas que achava que eu tinha fixação (palavras dela) pelo feminismo. O que ela me disse não foi nada incomum: que as mulheres ganharam bastante com o feminismo, mas também perderam muito, pois ela, por exemplo, depois de trabalhar o dia inteiro, ainda tinha que chegar em casa e fazer a limpeza do lar (e imagino que ela tinha o privilégio de classe de ter empregada). E já naqueles tempos (anos 80) eu respondia: Mas a culpa dessa injustiça é de quem? Do feminismo ou do machismo que continua imperando na sociedade?
De lá pra cá, li e ouvi dezenas de vezes a mesma história (e inclusive já escrevi sobre isso). Geralmente é uma lamúria vinda das mulheres (de classe média, óbvio, pois mulher pobre sempre trabalhou). Elas dizem que bom mesmo era quando a gente não tinha tantas conquistas e podia ficar em casa cuidando dos filhos. E claro que tá cheio de homem que adora acreditar nisso. Sempre houve livros contra as feministas. Esse é um discurso reciclado que rende muito dinheiro. Uma americana conservadora, Phyllis Schlafly, fez toda uma carreira em cima de malhar o feminismo. Engraçado ver mulheres que pregam que o melhor pra humanidade é a mulherada cuidar da prole trabalhar tanto! Mas se é por uma boa causa, parece que pode.
Bom, gente, existe um livro enorme e muito interessante de ler chamado A Mística Feminina, da Betty Friedan. É um clássico feminista publicado em 63 (que pode ser lido grátis, em pdf, aqui). E o que Friedan fez foi conversar com centenas de mulheres americanas dos anos 50 e ver se, num dos períodos mais conservadores da história (em que o número de matrículas de mulheres nas escolas e faculdades caiu pela primeira vez em um século, porque era vendida a ideia que educação era só um hobby que a mulher fazia antes de arranjar marido e constituir família), perguntar se elas eram felizes. Sua conclusão, bastante alarmante, é que não, não eram, que faltava alguma coisa em suas vidas, que só aquele ambiente doméstico e restrito não era suficiente. Então, pra começar, esse conceito de que a mulher vivia num paraíso cai por água. Pra quem não acredita num amplo estudo como o da Friedan, e prefere se basear em testemunhos de gente que conhece, recomendo conversar com suas avós. Vejam a visão que elas têm do prazer e do sexo, por exemplo. É uma geração inteira que mal conheceu o orgasmo, e eu tenho um pouco de dificuldade em imaginar como alguém pode ser feliz sem algo tão importante como o prazer sexual.
Mas, voltando ao livro de Carrie Lukas, perceba como a descrição já coloca no mesmo balaio “mentiras” do feminismo como carreira maravilhosa, igualdade, prazer sexual, inutilidade do homem, e o fracasso da dona de casa. Bom, sei lá, eu sou mulher e feminista e nunca considerei os homens desnecessários. O que o feminismo diz é que não há apenas um modelo de felicidade (casar e ter filhos), e que mulheres (e homens) devem ter liberdade para escolherem o que querem. Nunca vi uma feminista dizer que ser dona de casa é pra quem fracassa profissionalmente (aliás, em boa parte dos casos, donas de casa nunca tiveram uma carreira fora de casa, então como é esse fracasso de quem nunca tentou?). O que o feminismo diz é que é importante ser independente, e isso inclui o lado financeiro. Quem é independente não precisa suportar abusos, ué. Alguma mentira nisso?
Tem outra: muitos estudos indicam que uma sociedade em que a mulher trabalha e ganha tão bem quanto o homem automaticamente diminui a miséria dessa mesma sociedade. É pá-pum, automático mesmo, porque quando se eleva a condição de vida de uma mulher, eleva-se, por tabela, também a de seus filhos. É muito prejudicial prum país ter metade de sua população ganhando menos. Sabe-se que as mulheres no mundo têm apenas 10% da renda dos homens e só 1% de toda a propriedade. Ou seja, é um fato: as pessoas mais pobres do mundo são mesmo mulheres (por isso causa estranheza que autores falem das conquistas femininas como se já tivessem acontecido). Se as mulheres melhorarem de vida, a pobreza diminui. Não há nenhum mistério nesse cálculo.
Mas há ainda uma outra explicação para que tantas mulheres de classe média tenham que trabalhar. Até uma época, o “chefe de família” ganhava bem o suficiente para sustentar toda a casa. Com o achatamento de salários dos anos 80 (anos de governos reaças como o de Ronald Reagan e Margaret Thatcher), com a destruição de sindicatos, com o fim de vários auxílios estatais, a situação mudou. Para uma família de classe média manter seu padrão de classe média, só com dois adultos trabalhando. Fica a pergunta: isso foi culpa do feminismo ou de governos conservadores extremamente anti-feministas?
É adorável como a descrição do livro fala em “desejos legítimos” da mulher. Tipo, querer ser independente e ter condições iguais aos homens não é legítimo!
Daí o livro é definido como politicamente incorreto. Não precisava nem dizer. Politicamente incorreto virou sinônimo de “Senta que vamos voltar no tempo e defender as práticas mais fascistóides possíveis”. Quando ler que um livro/filme/peça/show/humor/autor/whatever é politicamente incorreto, prepare-se para ouvir opiniões machistas, racistas e homofóbicas, seguidas por um revisionismo histórico que coloque o homem branco hétero como o verdadeiro discriminado através dos tempos. Não falha.
Que mulheres possam fazer suas escolhas sem culpa é exatamente o que defende o feminismo. O livro de Carrie parece defender que mulheres tenham a única escolha de voltar pra casa pra fazer o trabalho doméstico. Escolha que nunca foi tirada pelo feminismo. E aí, quem está mentindo?
Finalmente, o livro quer ser um sopro de alívio para as mulheres angustiadas e sobrecarregadas. Sei. O livro quer é faturar uns trocados à custa de muitas mulheres que procuram um culpado por continuarem sobrecarregadas, ou infelizes por não alcançarem um padrão de beleza inatingível. Quando uma mulher precisa encontrar tempo para se matar numa academia de ginástica pra cumprir sua cota de sacrifício por ser mulher, ela vai culpar quem? Todo um modelo que lhe diz diariamente que ela é feia por não se enquadrar num padrão de juventude e magreza, ou o feminismo? Quando uma mulher chega em casa à noite depois de trabalhar duro e tem de limpar a casa e cuidar dos filhos, ela vai culpar quem? Uma estrutura que permite que o marido desabe no sofá vendo joguinho de futebol de terceira divisão sem ter que mexer uma palha nos afazeres domésticos, ou o feminismo? Ah, muito mais fácil culpar essa abstração chamada “ala mais radical do movimento feminista”. Seja lá o que for isso.
 

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