Por Raquel Júnia /EPSJV-Fiocruz, 13.12.2010
Apesar dos avanços visíveis na escolarização da população brasileira, ainda existem no país 14 milhões de analfabetos e faltam cerca de cinco anos para os brasileiros atingirem em média a escolaridade mínima prevista na Constituição Federal – oito anos de estudo. Entretanto, a população mais rica já estuda 10,7 anos, enquanto a mais pobre frequenta a escola por apenas cinco anos e meio. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009 e foram analisados no comunicado do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) nº 66: Pnad 2009 – Primeiras Análises: Situação da educação brasileira – avanços e problemas lançado no final de novembro.
Os indicadores mostram que existe uma grande desigualdade entre as regiões, sobretudo sudeste e nordeste, com relação à média de anos de estudo e outras estatísticas. O sudeste é a única região que ultrapassa a escolarização mínima garantida na Constituição, com uma média de 8,2 anos de estudo, enquanto no nordeste essa média é de 6,3 anos de estudo.“Esses dados não causam espanto diante das desigualdades abissais deste país. Isso só espelha o capitalismo desigual e combinado que temos. A modernização conservadora do capitalismo brasileiro produz regiões menos desenvolvidas em todos os sentidos e com menos direitos”, analisa a diretora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) e doutora em Educação, Isabel Brasil.
O comunicado do Ipea ressalta que se levou 17 anos – de 1992 a 2009 – para ampliar em 2,3 anos a média de anos de estudo da população brasileira. Outro indicador utilizado na análise dos dados é o chamado hiato educacional, que mede o quanto ainda falta para que a população atinja o mínimo de oito anos previsto na Constituição. O hiato educacional para a população de 15 ou mais anos era de 4,3 anos em 2009 — apesar de ter havido avanços em todas as faixas etárias analisadas de 1992 a 2009, sendo mais expressivo na faixa etária de 15 a 17 anos, em que esse hiato caiu de quatro para 2,8 anos. “Os dados revelam uma melhoria, mas uma melhoria insuficiente ainda. As políticas públicas precisam, portanto, ser mais acirradas. E para isso é necessário mais investimento. É um absurdo manter um superávit primário alto faltando investimento na educação”, opina Isabel.
Analfabetismo
De acordo com a Pnad, o analfabetismo vem diminuindo no Brasil desde o começo da década de 1990. De 1992 a 2009, a taxa de analfabetismo caiu cerca de sete pontos percentuais – de 17,2% a 9,7%. Apesar disso, o próprio comunicado do Ipea reconhece que o número de analfabetos ainda é muito elevado: “os números revelam que a população brasileira apresenta uma elevada taxa de analfabetismo, mesmo se comparada a de outros países do próprio continente sul-americano, como Equador, Chile e Argentina”, compara.
Em relação às regiões, o nordeste foi o que mais reduziu o analfabetismo, entretanto, ainda é a região com o maior número de analfabetos – 18,7% da população em 2009. A região norte apresenta uma taxa de cerca de 11%, o centro-oeste 8% e o sul e o sudeste cerca de 5,5%.
O documento do Ipea alerta que várias características da situação do analfabetismo em 2008 permaneceram em 2009: “o analfabetismo é bem mais acentuado na população negra; as regiões menos desenvolvidas, os municípios de pequeno porte e a zona rural apresentam piores índices; o analfabetismo está fortemente concentrado na população de baixa renda; o percentual e a quantidade de analfabetos é maior nas faixas etárias mais altas; e, apesar de o índice ser menor, existem, ainda, analfabetos jovens, o que significa que o sistema educacional continua produzindo analfabetos”, afirma o comunicado.
A diferença das taxas de analfabetismo entre a população rural e urbana também é bastante elevada. Enquanto nas localidades rurais, 22,8% da população é analfabeta, nas cidades e regiões metropolitanas, o índice é de 4,4%.
Ensino Médio
Na faixa etária de 15 a 17 anos, idade na qual os jovens devem estar cursando o ensino médio, a taxa de frequência bruta à escola aumentou de 59,7% em 1992 para 85,2% em 2009. Entretanto, para a mesma faixa etária, outro índice revela que muitos desses jovens que frequentam a escola não estão ainda no ensino médio. É o que mostra a taxa de frequência líquida, que mede a porcentagem de frequências que não apresentam distorção idade/série, ou seja, mede apenas os estudantes de 15 a 17 anos que de fato estão no ensino médio. Esse indicador, apesar de também ter se elevado nos últimos anos, em 2009 ficou em 50,9%.
Também nessa faixa etária, os dados mostram o quanto existem diferenças de acesso à educação entre ricos e pobres. Na parcela mais pobre da população, 31,3% dos jovens de 15 a 17 anos cursavam o ensino médio em 2009, proporção que para os mais ricos é de 72,5%. “Ou seja, a oportunidade de acesso ao ensino médio para os adolescentes mais ricos é mais de duas vezes maior que para os mais pobres. Os aspectos regionais também mostram diferenças. A situação é ainda pior entre os jovens pobres residentes da zona rural, onde apenas 28,2% estão incluídos no ensino médio. Jovens de cor negra, sejam do primeiro ou do último quinto [pobres ou ricos], estão em desvantagem em relação aos brancos”, diz o comunicado. Em relação ao item cor/raça, em todos os indicadores avaliados no documento há uma desvantagem da população negra em relação à população branca, seja nos anos de estudo, na alfabetização, na taxa de frequência à escola, entre outros.
O professor-pesquisador da EPSJV, Claudio Gomes, que é coordenador geral do ensino técnico, chama atenção para o fato de que, segundo os dados da Pnad, a população de 25 a 29 anos tem cerca de três anos de estudo a mais do que a população com mais de 40 anos, o que é resultado das políticas de universalização do ensino fundamental. “Essa população de 25 a 29 anos ou é beneficiada pela expansão dos programas de Educação de Jovens e Adultos promovida durante o governo Lula, ou pelo movimento de universalização do ensino fundamental do governo anterior. Há vários problemas que podemos avaliar nessas expansões, mas de qualquer forma essa geração já participou dessas políticas dos governos de Fernando Henrique e Lula”, comenta.
Os dados mostram que o analfabetismo também caiu muito nessa faixa etária entre 1992 a 2009 – de 8,2% para 1,5% —, o que demonstra também que essa parcela da população se alfabetizou fora da regularidade idade/série. “Em 2009, cai para 1,5% por causa do alargamento do EJA e Proeja. Efetivamente, as gerações estão estudando mais tempo, os avós estudaram menos do que os netos”, detalha Claudio.
No Brasil, ampliação significa queda da qualidade
Se o ensino fundamental hoje é universalizado, o mesmo não se pode dizer da qualidade da educação. Para Claudio Gomes, a história da educação no país mostra que as políticas de universalização sempre provocaram a queda da qualidade. “Aqueles que estudaram na rede pública antes da universalização, as pessoas que estão hoje com cerca de 70 anos, tiveram uma educação melhor do que os que estudam hoje na rede pública, por isso temos informações até hoje dos grandes colégios públicos de excelência. Mas isso era longe de ser universalizado, só estudavam aqueles que tinham um pouco mais de recursos”, explica.
De acordo com o professor, os argumentos para não se universalizar a educação com qualidade, apesar de ninguém defender isso publicamente, são os mais diversos, com destaque para a explicação mais usada comumente, que é a do custeio. Há, entretanto, outras explicações para a falta de qualidade nas escolas públicas: por exemplo, a formação dos professores. “Se você conversa com professores universitários de licenciatura, eles dizem que os melhores alunos deles não vão para a sala de aula, vão se dedicar ao mestrado, não serão os professores das escolas públicas ou serão por pouco tempo. Então, as universidades públicas continuam produzindo professores que são os menos preparados para tratar das condições que se encontra nas escolas públicas. Este encontro já foi mais harmônico entre professor e aluno”, diz.
Para Claudio, toda essa situação se deve também a uma banalização do conhecimento produzida na sociedade contemporânea que, inclusive, se autodenomina sociedade do conhecimento, o que parece uma contradição. “Aparentemente isso é um paradoxo, mas não é, porque o conhecimento é algo cada vez mais mercantilizável, o que o faz ser tratado com uma ligeireza e cada vez mais de modo estandartizado, independentemente dos códigos, registros e de suas inserções e interesses”, critica. Ele salienta que os professores também são prejudicados por essa situação, já que têm uma formação pior, não apenas na universidade, mas escola por onde passaram e nos próprios meios familiares, onde, por exemplo, se lê muito pouco.
O professor ressalta que o aumento da frequência à escola na faixa etária de 15 a 17 anos, como mostra a Pnad, precisa ser lido também como um indicador alavancado pela exigência do mercado por mais escolaridade, apesar do fato de que, como ele destaca, a escolaridade não garante emprego atualmente. “O pesquisador André Urani tem publicado isso insistentemente, demonstrado com estatísticas que não há essa relação entre escolarização, até mesmo de nível médio, e conquista de emprego”, cita.
O comunicado do Ipea aponta também que não há ainda no país uma universalização do ensino médio e que não seria possível hoje atender a toda a demanda por esse nível de ensino, caso todos os jovens concluíssem o ensino fundamental na idade adequada. “É necessário que haja, portanto, melhorias e expansão da capacidade física instalada para garantir acesso e permanência”, propõe o texto.
Evasão no Ensino Médio
Pela Pnad, a estimativa é de que 66,6% dos alunos que ingressam no ensino médio não o concluem. Além disso, o comunicado do Ipea ressalta que parte expressiva do atendimento escolar a essa faixa etária ocorre no período noturno. Claudio Gomes alerta para a ausência de sentido da escola na sociedade com um todo e para o jovem. “O ensino médio é a hora em que grita toda a mentira ou toda a verdade. O garoto começa a assumir qual é a sua posição no mundo e a refletir: ‘o que eu estou fazendo aqui e para que serve esta escola?”, diz. Para o professor, não há hoje uma perspectiva de vida para a maioria da juventude pobre na qual a escola possa ganhar sentido. “A escola é apenas uma das instituições que perderam significado. Não há como você garantir para o jovem que ele passará um tempão na escola, mas que depois será recompensado, porque não existe essa recompensa no final. Como convencer o jovem de que isso tem algum valor? É preciso ter alguma informação de que isso é parte de uma boa vida. Ora, quando não existe mais essa boa vida, isso também não tem mais como existir”, argumenta.
Claudio destaca ainda que é um grande equívoco desconsiderar o fato de que as condições materiais determinam a permanência do jovem na escola. “Quando a gente está com fome, não tem questão. A questão é matar a fome. Ele pode estar na escola e chega um tempo em que começa a pensar: ‘não tem nada a ver eu ficar aqui, eu tenho que trabalhar’. E ter que trabalhar não é nenhum capricho, é um imperativo da vida”, diz. Isabel Brasil completa: “Muitos desses jovens de 15 a 17 anos evadem da escola para trabalhar. E isso a escola não pode resolver sozinha. Podemos ter a melhor escola do mundo, mas se o aluno tiver que trabalhar para sustentar a família, ele não vai ficar. E aí está o limite da educação: não fizemos tudo que a educação pode, mas é preciso levar em consideração os efeitos da relação capital-trabalho”, afirma.
(*) Reportagem publicada orginalmente na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (FioCuz).
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