Ficha Limpa na Escola


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Saiu no dia 01 de Dezembro de 2010, uma reportagem na Zero Hora intitulada “Ficha Limpa no Grêmio da Escola”. A reportagem fala a respeito das regras que são impostas aos estudantes que desejam concorrer ao Grêmio Estudantil do Colégio La Salle, na cidade de Canoas-RS. O Grêmio, vale explicar, é a entidade estudantil que, naquela escola, representa os alunos da sétima série do ensino fundamental ao terceiro ano do ensino médio. No Colégio La Salle de Canoas, apenas estudantes considerados “ficha-limpa” podem concorrer ao grêmio. Os considerados “ficha-suja”, ou seja, os que têm ocorrências de indisciplina ou já reprovaram em alguma matéria, ficam impossibilitados de se candidatar. Foi o caso de uma chapa inteira, tida como formada por “bagunceiros” e de uma estudante, que teria discutido com um professor. Foram todos barrados pela direção da escola, sob o argumento da ficha suja.
 
A reportagem da Zero Hora foi extremamente simpática à medida e imagino que grande parte dos que leram também tenha pensado que a coisa tem que ser por ai mesmo, afinal, “é de menino que se torce o pepino” e, portanto, se ensina “valores”. Já eu, achei o fim da picada. Como assim ficha-suja? Quer dizer que um estudante discute com um professor (talvez até tivesse razão) na sétima série e fica inelegível até a faculdade, porque é “ficha-suja”? Ou será que a escola tem também um código penal próprio, com tempo de prescrição para cada um dos delitos cometidos? É incrível mesmo. Educar não é algo que deveria pressupor algum tipo de fé na capacidade do ser-humano de melhorar e de se corrigir?
 
Fiquei lembrando como eram as eleições para o Grêmio da minha escola, o Colégio Marista de Brasília, vulgo “Maristão”. Realmente não é mentira que os populares, engraçadinhos e bagunceiros sempre montam suas chapas. Era o caso, por exemplo, da “ChapaADÃO” e da “ChapaOLIN”, dois nomes que me vêm à mente agora. Ainda assim, esta é uma armadilha na qual não devemos cair. O movimento estudantil secundarista é um movimento sério e existe há mais tempo do que a maioria dos professores do Colégio La Salle: A UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas foi criada em 1948 e a organização dos “secundas” remonta aos Liceus, das décadas de 30 e 40. Não são poucas as escolas secundárias que são reconhecidas por sua tradição de movimento estudantil. Cito o Colégio Júlio de Castilhos, em Porto Alegre e o Colégio Elefante Branco, em Brasília, como bons exemplos em cidades que eu conheço. Em Caxias do Sul, onde moro, a UCES – União Caxiense dos Estudantes Secundaristas divide com o DCE da UCS a representação dos estudantes em alguns conselhos da cidade, como o Conselho Municipal de Transportes. E isto tudo sem nem falar no papel que este segmento teve em movimentos recentes, como o “Fora Yeda”. Como vêem, não é pouca coisa.
 
Não vou me aprofundar muito na parte burocrática do caso, pois movimento secundarista não é a minha praia, mas tenho dúvidas quanto ao direito que a escola tem de se intrometer nos assuntos do grêmio desta maneira. Existe uma legislação que rege as organizações estudantis secundaristas – a Lei do Grêmio Livre – e em nenhum momento ela cita qualquer papel legado às direções de escola na organização do movimento estudantil. Além disto, consta no próprio Estatuto da Criança e do Adolescente o direito de todos à livre organização e participação política. Sem restrições comportamentais.
 
O maior problema, entretanto, é o caráter disciplinador da atividade política que esta norma carrega. Uma das maiores preocupações que pairavam sobre o Projeto da Ficha Limpa – o que tramitava no Congresso - era justamente o impacto que ele teria sobre determinados movimentos notoriamente combativos da sociedade, como o movimento sindical. Não é raro que protestos e manifestações de rua terminem em prisões e processos. Neste sentido, o temor era de que a Lei viesse a atingir de forma muito negativa setores que normalmente se indispõem com o governo e com a iniciativa privada em negociações salariais, greves e etc. No caso do Colégio La Salle, acontece a mesma coisa. O movimento estudantil, que é um movimento notoriamente combativo, passa a ter a “docilidade” como pré-requisito. Os estudantes são ensinados desde cedo a “andar na linha”, a evitar conflitos e a serem cordatos e obedientes com os mestres. Fico pensando no caso da menina que não pôde se candidatar por ter discutido com um professor. Será que os estudantes do Grêmio têm algum tipo de “imunidade” garantida pela escola, caso precisem discutir com os professores, durante o exercício das suas funções?
 
Fora isso, a estigmatização do estudante ficha-suja, como aquele que bate-boca, o que tira notas ruins, aquele que gosta muito de barulho e pouco de diálogo, me lembra muito certos preconceitos que se reproduzem no ambiente universitário e até mesmo durante a vida profissional. Ou ninguém nunca ouviu dizer que sindicalista é profissional de segunda linha, que não trabalha? Lembram da Yeda dizendo que os diretores do CPERS não eram professores de verdade? Assim acontece com os médicos, com os engenheiros, com os psicólogos e etc.
 
Acho preocupante este tipo de prática, com plena aprovação da mídia, dos pais e do senso comum em geral. A primeira experiência política de uma pessoa deveria ser livre e emancipadora, com amplo estímulo ao exercício da crítica e nunca uma experiência tutelada, excludente e formadora de preconceitos. Ainda mais se estes preconceitos ajudam a moldar um perfil de militância estudantil bastante conservador e já bem conhecido por todos nós. No meu blog, escrevo uma série mensal chamada “A História do Movimento Estudantil de Direita”. Uma das organizações sobre as quais escrevi, o GAP – Grupo de Ação Patriótica, se apresentava como o legítimo representante “da juventude ordeira, estudiosa, cristã e democrática”. O GAP é um bom exemplo de um grupo de estudantes “ficha-limpa”, cujo maior legado ao país foi, simplesmente, apoiar o golpe militar de 64.

Diângeli Soares


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