Texto meu, no Blogueiras Negras, hoje 15 de abril.
por Letícia Maria
Vi este texto, com vários outros comentários, destaquei este:
“Minha empregada é como se fosse da família.”
Pergunta: ela vai dividir a sua herança com seus filhos?
[...]
Todos esses foram comentários que li por aí nas notícias sobre a tardia equiparação dos direitos das domésticas com os de todas as outras categorias. A gente já sabia que essa relação no Brasil era assim, mas não dá pra não ficar chocado com tantas manifestações sem noção. Parece que pra classe média brasileira as domésticas tinham mais é que ser gratas por abrirem mão das suas vidas pessoais pra servirem seus(uas) patrões(oas), tão bondosos e caridosos.” (Léo Moraes)
Repliquei, adicionando o comentário:
“Praticamente da família”, tenho vontade de vomitar quando ouço isso.
Pior, agora os filhos da empregada (quase da família) na universidade. É pra matar a dona patroa. Que morra então!
Aos que não sabem, sou filha de empregada doméstica. Minha mãe atualmente está sem trabalhar, dois anos depois de sofrer um acidente. Quando o acidente ocorreu, ela já não mais trabalhava como doméstica, por último ela era serviços gerais de uma grande empresa (serviços gerais = limpeza). Mas ela foi empregada durante anos: durante minha infância e minha adolescência.
Quando era criança, durante as férias, ela me levava junto para o trabalho. Lá, eu podia tomar banho de piscina e ajudar ela em algumas tarefas, onde normalmente, eu ajudava com os vidros (que eram muitos, ao longo dos três andares de uma casa). Na adolescência, quando eu queria muito uma roupa nova, para uma festa ou coisa do tipo, também fazia isso, assim poderia tirar uns 15 ou 20 reais para comprar uma blusa.
A mãe nunca teve restrições para que eu a ajudasse, mas sempre deixou claro que eu não devia seguir sua profissão, pois ela era degradante e desumana. Sempre.
Com 14 anos, resolvi que eu iria mudar de escola. Decidi que sairia da escola estadual, e iria para uma escola privada, pois precisava garantir que teria boas condições de ter um emprego. Do alto da sua fortuna, minha mãe me deu todo material escolar (incluindo livros e uniforme) enquanto, meu pai (que trabalhava como calderista em uma empresa de borracha) pagou minha matricula: resolvi ser professora e fui estudar em uma escola bem conceituada da cidade.
Nós tínhamos grandes dificuldades de entender como as coisas funcionavam na escola, e procuramos todas as opções possíveis de pessoas e informações que pudessem nos ajudar, a ir atrás de descontos, comprar livros usados, essas coisas. A patroa da mãe, na época, também era professora. Sugeriu que eu fosse para outra escola estadual que também tinha magistério. Na época, a escola era considerada ruim em relação à qualidade do curso e a aceitação no mercado. Até hoje não sei se ela quis realmente me ajudar, ou se ela não queria ‘gente como eu’ em uma escola, como a do filho dela.
A filha da empregada estudando com o filho do patrão. Imagina!
Antes das aulas começarem, eu já tinha conseguido quase todos os livros usados (uns ganhados, outros paguei bem pouquinho), consegui desconto e minha mãe pagou meu primeiro ano na escola. Sim, com sua fortuna de doméstica. Com o desconto, a mãe conseguia pagar minha mensalidade e minha passagem. A partir do segundo ano, comecei a trabalhar. Paguei todo meu curso, assim como paguei minha graduação. Não pude ser contemplada pelo prouni ou pelas cotas, por ser estudante de escola privada.
Enquanto minhas amigas se vestiam bem, iam para o shopping passear, eu trabalhava para pagar a escola. E quando queria sair com elas, limpava vidros para poder pagar. Sempre tive tudo para seguir no ramo da mãe, mas tive uma família com discernimento suficiente para me estimular a estudar e ir à luta por aquilo em que eu acreditava. Hoje temos condições de vida razoáveis porque meus pais ralaram durante anos para isso. E eu também.
Estudei na mesma universidade que o filho dapatroa. Agora com a PEC das empregadas domésticas a burguesia se agita. De novo.
Tem patroa achando injusto ter que pagar direito trabalhista.
Afinal, elas são praticamente da família.
Já passou da hora! Esta PEC vem mostrar que já passou da hora de parar de explorar o trabalho da mulher (na sua maioria negra) de forma tão injusta e mesquinha. Sabemos que o Brasil (em sua tradição escravocrata) ainda é o país que mantém o maior numero de empregadas domésticas no mundo, em torno de 7,2 milhões de pessoas, 83% delas, mulheres. Em torno de 70% dessas, são negras. Mas apenas cerca de 10% delas são contempladas pelos direitos trabalhistas. Luana Tolentino ao escrever a Carta Aberta ao Grupo Antiterrorismo de Babás, sinaliza algo.
Achou injusto, patroa?
Minha mãe se considerava da família, até a patroa desconfiar dela. A mãe foi demitida, e depois teve muitas dificuldades em se adaptar em outras casas, por isso passou para os serviços gerais. Não havia envolvimento emocional. A mãe é minha. Ela nunca fez parte da família da patroa.
Não gostou, patroa? Pega a vassoura e te vira!
Letícia Maria - Historiadora, mestranda em Ciências Sociais, motociclista e militante.
Escreve algumas insanidades em Memórias de uma Motoqueira Solitária
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