por Marcela Valente, da IPS
Buenos Aires, Argentina, 4/5/2012 – Com 35 matrículas, começou a funcionar em março, na capital argentina, o primeiro centro de ensino secundário que convoca particularmente travestis e outras minorias sexuais discriminadas pela escola tradicional. Bachillerato Popular Mocha Celis é o nome desta escola gratuita mantida por organizações sem fins lucrativos e dirigida para maiores de 16 anos dos coletivos de travestis, transexuais e transgêneros, “sem ser excludente”.
O nome é homenagem a uma travesti analfabeta que se dedicava à prostituição e que, após ficar desaparecida uma semana, foi encontrada sem vida, com sinais de violência e um tiro na cabeça. As suspeitas recaem sobre um membro da Polícia Federal que havia ameaçado a também ativista da não governamental Associação de Travestis Argentinas. Em conversa com a IPS, Francisco Quiñones, coordenador do centro de ensino secundário, explicou que a ideia “é criar uma escola inclusiva, livre de discriminação, que leve em conta e valorize as diferentes identidades trans, e onde consigam terminar o curso secundário”.
Quiñones acrescentou que “as escolas públicas, heteronormativas e binárias, expulsam essas pessoas”, que acabam abandonando os estudos em porcentagens muito superiores ao restante pelo medo da discriminação, que chega inclusive à violência física. Na nova escola há travestis que sofreram esse calvário, que na adolescência eram obrigadas a usar banheiros masculinos, onde sofriam maus tratos físicos, contou. “Algumas não iam ao banheiro por medo”, destacou. Por isso, para muitos travestis a escola Mocha Celis é uma iniciativa muito bem-vinda.
“Para mim é como uma porta para o mundo”, disse Laura Barrionuevo, de 29 anos, que precisou abandonar o secundário técnico quando tinha 15 anos. “Eu sou de Ituzaingó, província de Corrientes. Quando comecei a ser travesti, houve um tsunami na escola e na cidade e tive que partir. Maior, frequentei outras escolas, mas sentia que me viam como um monstro”, contou à IPS.
Laura vive agora a 35 quilômetros da escola em um quarto alugado em Ezeiza, na província de Buenos Aires perto da capital argentina. Viaja quase seis horas para ir e voltar da escola onde assiste aulas de segunda-feira a quinta-feira, mas “está feliz”, garantiu. Gosta de costurar, e junto com outras estudantes já pensa em economizar para comprar máquinas, linhas e fabricar suas próprias peças. “Não nasci para ficar parada na rua, se eu fosse disso teria me enchido de ouro”, disse, referindo-se à prostituição.
Uma vez que o centro seja reconhecido pelo Ministério da Educação do governo da cidade de Buenos Aires, um trâmite que está demorando além da conta segundo Quiñones, os estudantes poderão sair em três anos com o diploma de “perito auxiliar em desenvolvimento de comunidades”. Esta formação os prepara para serem líderes em comunidades ou formar cooperativas. Além disso, com o reconhecimento oficial, o diploma os habilitará a continuar estudando. “Gosto de radiologia e também de jornalismo”, indicou Laura.
A escola funciona em um local cedido pela Associação Mutual Sentimento e foi inscrita na Fundação Diversidade Divino Tesouro. As aulas são dadas por 25 professores, que também contribuíram para preparar o lugar. Como emblema da instituição foi escolhida a imagem de Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888), ex-presidente e grande incentivador da escola pública no começo da vida independente da Argentina. Mas seu rosto sofreu uma intervenção: está com uma peruca ruiva e os lábios rosados.
A aula de primeiro ano tem as carteiras dispostas em círculo, voltadas para o professor. “Aqui, os conhecimentos dos estudantes são tão válidos quanto os dos professores”, explicou Quiñones. Os planos de estudo são iguais ao da escola secundária convencional para adultos, mas com “um olhar mais amplo”, detalhou o coordenador. Há algumas matérias adicionais, como cooperativismo ou memória trans, que repassam o ativismo deste grupo.
A iniciativa surgiu do diagnóstico feito pelo livro La Gesta do Nombre Propio, publicado em 2005, com dados arrepiantes sobre marginalização. O texto contém uma pesquisa mostrando que 64% dos travestis ouvidos não terminaram o ensino primário. E do total dos que haviam concluído esse ciclo, apenas 20% se formaram no secundário. Esta falta de instrução deixa este coletivo à margem dos empregos de qualidade e empurra a maioria (79%) para a prostituição como fonte principal de renda.
A pesquisa mostra ainda que apenas 11% dos travestis entrevistados estudavam e mais de 70% desejam poder estudar, mas não estavam dispostos a dissimular ou negar sua verdadeira identidade sexual. O acúmulo de discriminações que enfrentam estas minorias leva muitos de seus integrantes a perderem a vida muito jovens. O informe indicava que do total de travestis mortos, em sua grande maioria devido à aids ou por homicídio, 69% tinha menos de 41 anos.
De todo modo, a ideia não é limitar o espaço delas. “Do total de 35 matriculados na Mocha Celis, dez não têm identidades trans, mas são pessoas que vivem na rua ou muito pobres e que se sentem excluídas da escola tradicional”, disse Quiñones. “Embora os alertemos que terão que passar em matérias como memória trans, nos dizem que para eles não é fácil encontrar um lugar receptivo e livre de discriminação onde possam terminar o secundário, e por isso querem estudar na Mocha Celis”, ressaltou. Envolverde/IPS
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