“Não gosto de frescura. Vamos falar sério, sem galinhagem. Que loucura é essa?” Sentado numa poltrona parruda com um laptop no colo, o dono da casa, Marcelo Yuka, dirige a pergunta ao xará. Instalado num trio de cadeiras conjuminadas, arrematadas de um cinema, Marcelo Freixo precisava ser convincente e persuasivo na resposta.
Artífice do encontro daquela sexta-feira, dia 9, o espaçoso Eduardo Alves, chefe de gabinete do deputado estadual do PSOL carioca, preferiu se anichar sobre a cama do anfitrião. Dali, Edu, como é chamado por todos, podia ouvir a conversa com conforto total – o andar inteiro era uma espécie de loft, sem divisórias entre sala, quarto, cozinha e varanda.
Marcelo Fontes do Nascimento, o Yuka dos tempos da banda O Rappa, deixou Freixo concluir o arrazoado antes de se pronunciar. Paraplégico há quase doze anos, em razão dos tiros que o acertaram quando tentou impedir um assalto na Tijuca, Yuka jamais havia recebido proposta tão inesperada em seus 46 anos de vida.
– O Gabeira vai te apoiar?, pergunta Yuka.
A resposta é não.
– O PV deve lançar a deputada Aspásia Camargo com a justificativa de que na Conferência Rio+20 a cidade precisa ter uma candidatura verde para prefeito. Mas acho que é outra coisa, é para não nos apoiar, explica freixo.
– Como foi a campanha anterior?, quer saber o músico, referindo-se à reeleição de Freixo em 2010.
– Fui o segundo mais votado.
– E agora, como está a situação por enquanto?
– O Eduardo Paes [prefeito do Rio de Janeiro] tem 37% dos votos e eu tenho 12%.
– E entre esses 37% e 12%, não tem mais ninguém?
– Não, estou em segundo.
Na sua primeira eleição legislativa, em 2006, o niteroiense Freixo pousou na política fluminense como um estranho. Passados seis anos, aprendeu muito, mas mudou pouco – continua adepto do voo livre e solo, ao qual se junta quem quiser.
– Por que você acha que dá para fazer campanha sem coalizão alguma?, prossegue a sabatina.
– Nossa aliança precisa se dar em outra esfera, não reproduzir a lógica em vigor. Precisamos ser capazes de mobilizar quem está cansado da política convencional. Se der certo, as alianças virão se juntar a nós no segundo turno.
Edu se levanta da cama, acha um violão, volta para o seu posto de observação e começa a dedilhar. Foi ele quem recrutou Yuka para o partido dois anos atrás. Por ter saído do PT em 2003, considera-se “psolista” antes mesmo de o Partido Socialismo e Liberdade existir. Agora, torce para a conversa terminar a contento. Cientista social formado pela UFRJ, Edu, com 44 anos, é o escudeiro mais afetuoso do chefe.
– Você acha realmente que meu nome pode ser uma boa?, indaga, por fim, Marcelo Yuka.
– Fundamental.
– Então você o tem.
Freixo conseguira fisgar um companheiro de chapa ainda menos catalogável do que ele. Na mesma noite, submeteria a indicação à direção do partido. “Se conseguirmos chegar ao segundo turno, pode encomendar terno novo”, brincou. “Sou mais racional, acho que não vai dar”, rebateu Edu. “Isso vai ser uma roubada fodida. Acho que vou enfartar”, concluiu Yuka.
Dali, Freixo seguiu num Bora blindado até o Centro da cidade, com quatro seguranças logo atrás, enfiados num outro Bora também preto, mas sem blindagem. O deputado tinha agendado uma audiência no meio da tarde com a delegada Martha Rocha, chefe da Polícia Civil. Como era sexta-feira e não havia sessão na Assembleia, estava liberado do paletó. Continuava com a mesma roupa com que saíra cedo de casa para uma penca de compromissos informais: camisa social para fora do jeans e tênis branco. Na sede da polícia, foi atendido com solicitude neutra pela recepcionista. Somente ao ter o nome copiado da carteira de identidade foi olhado com simpatia curiosa, seguida de um sorriso discreto, cúmplice. A ficha da funcionária tinha caído.
Tem sido assim desde meados de 2008, quando Freixo tornou-se um nome mais forte que um rosto. Seu nome-logomarca, quase sigla, passou a ser automaticamente associado ao combate às milícias que atuam no Rio de Janeiro. Criador e presidente da bombástica Comissão Parlamentar de Inquérito que revelou a gangrena comandada por policiais civis e militares, bombeiros militares e agentes penitenciários, o nome alçou voo para além da legenda que o abriga. Mesmo assim, uma minoria restrita dos 177 mil fluminenses que o reelegeram num arrastão de entusiasmo em 2010 o reconheceria se cruzasse com ele na rua.
Há motivos para esse descompasso. Aos 44 anos, o homem por trás do nome é um tipo de brasileiro comum. Não tem estampa, altura, porte, pose ou qualquer atributo físico que cause impacto ou atraia fotógrafos. Sua ficha de identificação policial registraria, no máximo, a pinta na pálpebra inferior do olho esquerdo. Ademais, Freixo frequenta pouco as colunas sociais – e não apenas pelas ameaças de morte que recebe. Suas escolhas de lazer e entretenimento são prosaicas: um cineminha obrigatório com a mulher – a jornalista Renata Stuart –,o chopinho no mesmo bar e com os mesmos amigos de juventude, em Niterói, férias familiares na Chapada dos Veadeiros, alguma praia de Santa Catarina, uma pousada em Paraty.
Nada em Freixo é extravagante. Sua singularidade está alhures. Primeiro, nas origens. Depois, nas escolhas que fez de como tocar a vida.
Marcelo Ribeiro Freixo não tem nem nunca teve casa própria. “Se eu for viver a angústia de não ter teto e outras coisas, não vou viver. Faço o que dá com o que ganho e vivo bem, sem sobras”, explica. Dos doze burgomestres que ocuparam a Prefeitura do Rio nos últimos 37 anos – somados aos cinco governadores do antigo estado da Guanabara, que reinaram na cidade entre 1960 e 1975 –, é muito provável que nenhum tivesse ou tenha patrimônio tão esquálido como o do candidato do PSOL. Freixo vive dos quinze salários anuais a que tem direito todo deputado estadual, com rendimentos que equivalem, por lei, a 75% do salário dos deputados federais. Até a aprovação, em Brasília, do último reajuste, no final de 2010, ele recebia 12 384 reais. Desde então, embolsa 20 042,39 reais.
Do que entra, 17% saem direto para a pensão da filha Isadora, de 13 anos, que mora com a mãe. Outros 1 700 pagam o aluguel do filho João, de 21 anos, que mora em Niterói, estuda na Universidade Federal Fluminense e trabalha no Rio. O que o jovem ganha como estagiário numa organização da sociedade civil paga o transporte e a alimentação. O restante ainda continua a cargo de Freixo.
O plano de saúde dos pais, além do aluguel de 700 reais do apartamento de dois quartos sem elevador em que moram, também faz parte de seus gastos fixos. Foi ali, no mesmo bairro do Fonseca e na mesma rua de cinco prédios, que o garoto Marcelo cresceu e se tornou adulto sem jamais ter tido um telefone em casa. O único bem que Freixo teve até hoje foi um Fiat Uno 2003. Vendeu-o quatro meses atrás por 9 mil reais. Este ano, pela primeira vez, o candidato a prefeito do Rio vai poder declarar economias depositadas em caderneta de poupança – acredita que cheguem a 8 mil. “Num mês consigo botar mil reais, no outro 500, não passa disso, mas está ótimo. A Rê me ajuda muito. Dividimos tudo e somos muito controlados”, diz ele, casado desde dezembro de 2010 – seu terceiro casamento.
Se não tivesse trocado a profissão de professor de história pela política, Freixo estima que seus rendimentos “talvez caíssem pela metade, mesmo trabalhando em três empregos, como sempre fiz”.
Seu ninho domiciliar atual também está fora do padrão. Freixo trocou o bairro Fonseca, em Niterói, pelo Leblon, e transferiu seu título de eleitor para o Rio de Janeiro em agosto de 2011, zerando assim o requisito legal a esse respeito. “Para concorrer às eleições, o candidato deverá possuir domicílio eleitoral na respectiva circunscrição pelo prazo de, pelo menos, um ano antes do pleito”, diz a lei.
O apartamento atual na Zona Sul carioca pertence ao pai de Renata, um militar separado da mãe, com o qual ela mantém relação distante. Renata e a irmã Roberta moram ali há anos e se habituaram a ter hóspedes pagantes para ocupar um dos três quartos. Desde que casou com Renata e se mudou para lá, é Marcelo Freixo quem divide as despesas da casa com as irmãs. O fato de um deputado estadual em segundo mandato não ter patrimônio suficiente para morar com a esposa em casa própria faz dele uma ave política realmente exótica. “Não sou eu que tenho de explicar por que eu não tenho bens, são os outros que têm de explicar de onde vêm os bens deles”, observa Freixo, referindo-se a alguns colegas de plenário.
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