Editor: Luiz Henrique Coletto
Autora: Debora Diniz
Autora: Debora Diniz
O tema da diversidade sexual e da homofobia na educação esteve na agenda pública do Brasil há poucos mais de seis meses de forma intensiva: foi em maio que um material didático elaborado a pedido do Ministério da Educação teve seu longo processo de elaboração abortado pela Presidenta da República, num ato envolto em política pouco transparente e republicana. Àquela época, escrevi sobre a polêmica aqui no Bule, analisando as dimensões técnica (o material enquanto política pública) e política da questão. Uma defesa que ressaltei naquele texto foi a de que o tema da diversidade sexual era premente já na educação infantil, bandeira que ainda defendo e que se ancora no próprio cenário da homofobia na escola.
Nesta quarta (23) que passou, ocorreu na Câmara dos Deputados o Seminário Plano Nacional de Educação – mobilização nacional por uma educação sem homofobia, que foi promovido pelas comissões de Legislação Participativa, de Direitos Humanos e Minorias e de Educação e Cultura. O evento tinha o objetivo de pressionar por uma abordagem mais ampla e diversificada do tema do que aquela que se pretende com a nova versão do PNE – a observação principal do movimento LGBT é a de que as próprias Conferências Nacionais de Educação haviam previsto bem mais ações do que a única que consta na nova versão do Plano.
Neste seminário, a antropóloga Debora Diniz fez uma fala sobre homofobia nas escolas que é muito interessante. Sua reflexão aborda, basicamente, dois eixos: um sobre a definição da homofobia que observa suas implicações práticas – naquilo que a autora vai diferenciar porvítimas da homofobia e refugiados da homofobia; e outro sobre o efeito linguístico e ideológico que a adoção do termo bullying encobre em relação à homofobia nas escolas. Este segundo ponto é, notadamente, o mais interessante porque traz uma perspectiva relativamente nova sobre a questão ao desnaturalizar o uso pouco reflexivo que temos feito do termo bullying.
Debora Diniz é uma das pesquisadoras da Anis - Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Além disso, é membro emérita aqui da LiHS e uma acadêmica expressivamente atuante nos campos da laicidade do Estado, direitos reprodutivos e homofobia. Ela foi uma das autoras da pesquisa que identificou que os livros religiosos utilizados nas escolas brasileiras estimulam a intolerância (religiosa) e o preconceito. Os resultados estão no livroLaicidade: o ensino religioso no Brasil. Em maio deste ano, ela também concedeu entrevista à revista Época tratando do tema da ameaça à liberdade de crença nas escolas brasileiras por causa do ensino religioso.
No seminário ocorrido em Brasília, Débora voltou-se para outro dos temas com o qual tem se preocupado muito, a homofobia no ambiente escolar. Já em 2009, ela foi uma das organizadoras da coletânea de textos Homofobia & Educação: um desafio ao silêncio, que traz textos de pesquisadores e ativistas brasileiros, bem como do jurista Daniel Borrilo (Universidade de Paris X – Nanterre). Este autor, inclusive, tem sido um dos mais lidos e discutidos por aqueles que tratam de uma conceituação histórica e abrangente do termo homofobia. Recomendo a leitura do seu texto (A homofobia) presente na coletânea indicada.
Para a leitura e apreciação, então, reproduzo abaixo a fala da professora Debora Diniz feita no Seminário na quarta-feira passada em Brasília. O texto foi disponibilizado pela própria autora.
Homofobia nas Escolas
Debora Diniz (*)
Obrigada pelo convite para participar de tão importante evento para a educação e a igualdade no Brasil. Em particular agradeço a Toni Reis – parte da minha militância pela igualdade sexual é inspirada pelo trabalho que ele realiza. Dada a extensão de apresentações nesta tarde, minha exposição será breve. Tocarei em dois conceitos que considero centrais: i)o que é homofobia e como ela viola a igualdade na escola; ii) por que devemos falar em homofobia e não em bullying nas escolas.
(i) O que é homofobia?
Homofobia é uma prática discriminatória que falsamente pressupõe a superioridade da heterossexualidade a outros regimes e práticas sexuais. Homofobia e heteronormatividade, isto é, a hegemonia heterossexual à vida social, se sobrepõem, apesar de ser possível traçar fronteiras políticas entre os conceitos. A homofobia se expressa pela violência, pela injúria, pela opressão. Falamos em vítimas da homofobia. Queria demarcar a violência na homofobia: a homofobia sempre deixa marcas, sejam as feridas no corpo, o cadáver ou as barreiras no reconhecimento. Há um vocabulário de conflito armado sendo agora apropriado pelos movimentos LGBT: “ataques homofóbicos”, “crimes homofóbicos”, “luta pela igualdade”, “desaparecimento de pessoas”, etc. Sim, ao mesmo tempo em que é um vocabulário político de denúncia, precisamos estranhá-lo pelo que nos chama a atenção – estamos em um conflito armado? Só há dois destinos aos fora da norma heterossexual: serem vítimas da violência homofóbica ou serem refugiados de sua patrulha moral. Grande parte de nossos refugiados da heteronormatividade estão nas escolas, descobrindo-se frente a um ambiente homofóbico.
Não há fundamento moral ou ético possível e aceitável para a homofobia.
A homofobia é um dos dispositivos que mantém a ordem heteronormativa na vida social – e a escola é um dos espaços prioritários para a garantia dessa ordem. É lá que se promovem os valores compartilhados à cidadania. A homofobia viola a igualdade, impede o reconhecimento, autoriza práticas de violação de direitos humanos. Não há fundamento moral ou ético possível e aceitável para a homofobia. Um homófobo precisa ser silenciado e suas práticas reprimidas. Por isso, a criminalização da homofobia é tão eloquente para a igualdade – o que me parece um paradoxo a quem acredita na educação como um dos principais sistemas de promoção da igualdade. E aqui quero ser clara: não há sistema de crença que legitime a homofobia, por isso não há como se apelar à expressão religiosa para o discurso homofóbico como expressão da liberdade de crença. Religião não autoriza ou legitima o discurso do ódio. E menos ainda nas escolas, onde ensino religioso é ainda pouco regulamentado pelo MEC. Essa afirmação simples traz conseqüências imediatas para as práticas de convivência e pedagógicas das escolas. Professoras, pedagogias e convivências devem se subordinar à igualdade sexual como um valor. Os livros – mesmo os de religião – devem reconhecer a igualdade em matéria sexual e afugentar expressões homofóbicas de seus textos e vozes.
Aqui chegamos no outro lado de um esforço à criminalização da homofobia e o que toca diretamente a educação e a escola. Tenho dúvidas se uma lei que reprima com a força do Estado a homofobia irá mudar comportamentos e valores. Talvez os iniba, o que já é importante para o direito à vida das vítimas da homofobia. Mas para os refugiados da homofobia não é suficiente. Por isso, a escola é um espaço tão prioritário para ações duradouras de promoção da igualdade. A escola mira o futuro, além de atuar no presente. O Direito Penal persegue o passado nos homófobos. É na escola que nosso principal esforço para a igualdade sexual precisa estar. Mas não é simples: os homófobos podem ser os professores, os diretores das escolas, os pais das crianças. A resistência homofóbica e heteronormativa ronda as ações de igualdade sexual. Vejam a controvérsia – agora parece resolvida – dos vídeos educativos sobre sexualidade, os kit anti-homofobia do MEC. Simplesmente romper o silêncio já parece insuportável para a moral heteronormativa que se mantém por um braço violento – a homofobia – e por um braço opressor silencioso – a hetenormatividade compulsória que falsamente supõe que o acoplamento pênis-vagina é o destino da reprodução social e biológica da humanidade.
(ii) Homofobia e não bullying!
Bullying é um neologismo com origem na língua inglesa que diz algo como “provocação”. A provocação entre crianças é parte de uma socialização naturalizada – se provoca para se reconhecer os limites e se definir frente ao outro como um espelho. Mas há outra raiz no conceito de bullying: quem provoca e agride é o “valentão”. Há desigualdade de força e de potência no sujeito que atua pelo bullying. O ator do bullying é alguém que sabe que tem força – e aqui é força física. Ele atua sozinho ou em grupo. Alguns dizem que o bullying sempre existiu. Sim, me lembro do meu tempo de escola – sempre havia provocações contra os gordinhos, as meninas vesgas ou as crianças com deficiência. Me lembro também do sofrimento dessas crianças. Em geral, eram crianças solitárias. Tento imaginar as consequências dessas provocações injustas para os adultos de hoje. Elas foram refugiadas da fúria contra a diferença marcada no corpo. Elas são sobreviventes do bullying escolar, de um tempo em que o neologismo não nos socorria para expressar a indignação pela provocação injusta.
Houve algo de novo para precisarmos de um neologismo para falar dos novos acontecimentos: a sexualidade na infância e na adolescência passou a estar na agenda política e educacional. Crianças e adolescentes têm sexo e sexualidade.
Aqui está a chave do bullying: é uma violência contra o corpo fora da norma. Vejam que não falo em normal, pois norma e normal se confundem para a imposição das regras sob o corpo. O corpo que foge da regra – seja nos olhos da menina vesga, nas pernas do menino cadeirante, ou no cabelo da menina negra – é matéria suficiente para ação do indivíduo ou do grupo provocador. Por isso, estranho o uso do neologismo de bullying para algo tão antigo e persistente ao universo escolar, e com tantas ramificações na discriminação. A discriminação pelo corpo acompanhou a socialização de todos nós nesta sala e acompanha a vida de todas as crianças. Vivemos em uma ordem social que discrimina e oprime a diferença no corpo. A minha descrição da persistência não significa que devemos naturalizá-la: ao contrário, é uma prática perversa, injusta e imoral. Precisamos falar dela e rompê-la exemplarmente. Mas houve algo de novo para precisarmos de um neologismo para falar dos novos acontecimentos: a sexualidade na infância e na adolescência passou a estar na agenda política e educacional. Crianças e adolescentes têm sexo e sexualidade.
Temos um nome para o bullying com fundamento na cor da pele: racismo. Por isso, sugiro manter a mesma potência no campo sexual: o bullying sexual tem um nome, homofobia.
Bullying nada mais é que um neologismo puritano e burguês – um vocábulo heteronormativo – para falar da provocação, da discriminação aos fora da norma heterossexual. Quem são as vítimas do bullying midiatizadas nos últimos tempos? O menino que se tranveste, a menina que gosta de outras meninas, o transexual que não sabe que banheiro usar na escola. Com raras exceções de uma política inclusiva à violência corporal, raramente ouvi falar em bullyingcontra as crianças obesas ou com impedimentos corporais. Quando os gordinhos aparecem, são como um apêndice da diversidade no bullying. O alvo são os fora da norma heterossexual. Quando o tema é a cor da pele, não falamos em bullying. Temos um nome para o bullying com fundamento na cor da pele: racismo. Por isso, sugiro manter a mesma potência no campo sexual: o bullying sexual tem um nome, homofobia.
O bullying é um neologismo paradoxal. Ao mesmo tempo potente, pois nos permitiu entrar na escola e descrever algo silencioso: a homofobia nas práticas de provocação entre crianças ou entre professores e crianças. Mas também esconde seu próprio fundamento na sexualidade: retiramos a sexualidade do bullying, não falamos em homofobia. A naturalização do bullyingcomo algo comum e permanente à infância e à escola esconde sua matriz heternormativa. Obullying não é espontâneo nas crianças, não pode ser natural à socialização das crianças. A origem do bullying que nos interessa hoje é a homofobia, um conceito poderoso e que precisa ser potencializado na escola.
O neologismo bullying é palatável às escolas, às famílias, à moral heterossexual. Não falamos em crianças e adolescentes e suas práticas sexuais fora da norma. Falamos em “provocações” e protegidas por um neologismo que a distância lingüística não nos provoca diretamente. Sentimos diferentemente, como se fosse, falsamente, um novo fenômeno. Não é. A homofobia está na escola, assim como na Avenida Paulista. O bullying na escola é uma expressão primária e permanente da homofobia em nossa vida social. Por isso, minha principal recomendação política a esta audiência pública é que reconheçamos a força política do conceito de homofobia. Não falamos de bullying apenas, mas de crianças e adolescentes refugiado pela fúria homofóbica, que precisamos proteger para que não se transformem em vítimas da homofobia no futuro ou mesmo na escola.
(*) Antropóloga, Professora da Universidade de Brasília e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Apresentação na Audiência Pública Homofobia nas Escolas. Câmara dos Deputados. Novembro de 2011.
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