Concordamos com o advogado Luís Eduardo Barroso: “Obrigar uma mulher a passar meses, entre o diagnóstico e o parto, dormindo e acordando sabendo que não terá aquele filho, é impor a ela um imenso sofrimento inútil. Isso viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”
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Fonte: Conselho Nacional de Justiça
A VIDA DEPOIS DO ABORTO
Nas próximas semanas, o STF deve decidir sobre a interrupção da gravidez de fetos sem cérebro. ISTOÉ mostra como vivem as mulheres que abortaram legalmente em 2004, quando o pro cedimento foi permitido por alguns meses
A paulistana Camila Moreira Olímpio, 27 anos, deu pulos de alegria quando engravidou. Antes de completar três meses de gestação, sua casa já estava abarrotada de roupinhas de bebê. O enxoval era todo rosa porque ela nunca teve dúvidas de que a criança que carregava no ventre era uma menina. Até o nome estava escolhido: Stacy. Com o berço e o guarda-roupa instalados no quarto, Camila e o marido foram construindo sonhos. “Daí veio a desilusão. Fui fazer o ultrassom e o médico disse que o meu bebê não tinha calota craniana nem massa encefálica”, lamenta Camila. “Desci da maca e saí correndo do posto de saúde. Parei na beira da avenida. Ali, vi o meu castelo desabar.” Ela descobriu que a criança que tanto amava era mesmo uma menina. Mas constatou, também, que Stacy não sobreviveria porque sofria de uma grave má-formação fetal chamada anencefalia. Uma anomalia congênita irreversível e incompatível com a vida.
“E agora, o que eu faço?”, perguntou aos médicos. Eles explicaram que levar a gravidez adiante lhe traria mais riscos do que numa gestação comum. Camila ficou dez dias enfurnada em casa. Não abria a janela, não tomava banho, não penteava o cabelo, não comia, não levantava da cama. “Entrei em depressão. Estar grávida e saber que não teria minha filha comigo estava me matando”, lembra. “Se eu não antecipasse o parto, perderia a chance de ter outro filho porque eu morreria junto.” Camila decidiu se valer de uma liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio Mello, que permitia que grávidas de anencéfalos fizessem aborto. Conseguiu realizar o procedimento no 5º mês de gestação. Ela foi uma das cerca de 60 beneficiadas entre 1º de julho e 20 de outubro de 2004, período em que a decisão provisória vigorou. Começava ali uma batalha jurídica entre grupos de defesa dos direitos humanos e entidades de cunho religioso. Esse embate, no entanto, pode terminar em breve. Em agosto, o STF deve julgar uma ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que reivindica a legalização do aborto em casos de anencefalia.
“Obrigar uma mulher a passar meses, entre o diagnóstico e o parto, dormindo e acordando sabendo que não terá aquele filho, é impor a ela um imenso sofrimento inútil. Isso viola o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana”, afirma o advogado Luís Roberto Barroso, da CNTS. “É uma situação equiparável à tortura. Interromper ou não a gestação deve ser uma opção da mulher e de seu médico. O Estado, o Judiciário ou quem quer que seja não têm o direito de interferir nessa decisão.” Barroso fundamenta a ação em mais dois pilares. Primeiro, alega que a interrupção da gestação de um anencéfalo, tecnicamente, não pode ser considerada aborto porque o feto não é uma vida em potencial. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), o que define a morte é a falta de atividade cerebral e, como o anencéfalo não tem cérebro, ele seria um natimorto. Um dos argumentos dos grupos contrários é que, caso a gestação chegue aos nove meses, os órgãos do bebê podem ser doados. Mas nem a OMS nem o Conselho Federal de Medicina recomendam a doação porque esses órgãos não são de boa qualidade.
A outra tese de Barroso é que a lei brasileira permite o aborto em duas ocasiões: se a gravidez é resultado de estupro ou se há riscos para a mãe. “Interromper a gestação de um feto anencefálico é menos do que nas duas situações já previstas pelo Código Penal, pois tanto no caso de estupro quanto no de riscos para a mãe, o feto tem potencialidade de vida”, relata o advogado. “O nosso Código Penal não contempla a hipótese do feto inviável porque foi elaborado em 1940, quando o diagnóstico da anencefalia não era possível.” Paulo Fernando da Costa, vice-presidente da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, entidade católica das mais fervorosas no combate à ação da CNTS, contesta. “Não podemos condenar uma pessoa à morte. Se essa proposta for aprovada, será aberta uma janela para a legalização completa do aborto”, afirma. “Existem projetos sobre o tema tramitando no Congresso Nacional desde 1991. O que esses grupos feministas não conseguem no Legislativo, tentam via Judiciário”.
Costa conta que a Associação fez um filme sobre Marcela de Jesus – uma menina do interior paulista, que morreu em agosto de 2008, com 1 ano e 8 meses – e está entregando aos ministros do STF cópias do DVD. A história de Marcela se tornou uma das principais bandeiras de grupos religiosos na cruzada antiaborto. “É uma bandeira desumana. A Igreja Católica explora esse caso para mistificar uma tragédia. Marcela não era anencéfala. Tinha merocrania”, garante o geneticista Thomaz Gollop, professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Grupo de Estudos sobre o Aborto. O médico explica que o que distingue esse quadro da anencefalia é a presença de um cérebro muito rudimentar – um pouco mais de massa encefálica, coberta por uma membrana. Isso faz com que o indivíduo sobreviva um pouco mais. Mas não faz com que tenha cérebro nem que interaja. “Quando a anencefalia é diagnosticada, não estamos discutindo a vida, mas a morte certa”, diz Gollop. “Tenho esperança de que, assim como em decisões recentes, o Supremo respeite a laicidade do Estado”.
Além de refutar a legitimidade do Supremo, justificando que a Corte tem se debruçado sobre questões que seriam de competência do Legislativo, a Associação questiona a postura do ministro Marco Aurélio. “Entramos com uma representação na Procuradoria-Geral da República alegando a suspeição do ministro. Anexamos reportagens em que ele manifestou opiniões favoráveis ao aborto”, declara Costa. Desde 1989, mulheres têm sido autorizadas pela Justiça a interromper a gestação de fetos anencéfalos. A diferença agora é que, se o Supremo acolher a proposta da CNTS, elas não precisarão mais recorrer aos tribunais e serão poupadas de meses de angústia aguardando uma sentença. Os hospitais públicos, assim como os planos de saúde, terão de lhes oferecer a assistência necessária.
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