Após aborto, mulheres entram em hospitais como pacientes e saem indiciadas


Renata Mariz - Correio Braziliense
Pontuado por riscos, o itinerário da mulher processada criminalmente pela prática de aborto por meio de medicamento proibido começa na decisão compartilhada com o companheiro e termina no local onde ela procura por socorro. É do lugar criado para acolher pessoas em situação de emergência que muitas saem indiciadas. A constatação vem de dados científicos. Das sete mulheres cujas histórias foram analisadas na pesquisa inédita Quando o aborto se aproxima do tráfico, realizada pela Universidade de Brasília (UnB) e pelo Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero, que será publicada na revista Ciência & Saúde Coletiva, três foram denunciadas quando ainda estavam no leito do hospital.
A presença de médicos como testemunhas de acusação em 10 inquéritos policiais e processos judiciais investigados no estudo, com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, abre a discussão para o papel dos profissionais de saúde no atendimento a quem praticou aborto. “Nem pelo nosso código de ética nem pelo Código Penal é permitido que o médico quebre o sigilo das informações de uma paciente que praticou aborto.
Quando arrolado como testemunha, deve-se declarar impedido. Se age contrário a isso, esse profissional sofrerá punições”, destaca José Vinagre, corregedor do Conselho Federal de Medicina. De acordo com ele, entre os cerca de 200 processos em andamento no órgão, nenhum se refere à quebra do sigilo entre médico e paciente.

Para a antropóloga Debora Diniz, uma das autoras do estudo sobre mulheres que responderam criminalmente pela prática do aborto, é preciso aprofundar mais as análises a respeito da participação dos médicos nas denúncias de pacientes à polícia. As descrições contidas nos processos judiciais e inquéritos policiais pesquisados demonstram o drama enfrentado antes, durante e depois da busca por socorro. Uma das mulheres, por exemplo, finalizou o aborto sozinha, em cima de uma maca, enquanto esperava por atendimento. Outra nem tinha recebido alta quando foi indiciada pela polícia. “Em vez de ser um local de acolhimento, o hospital passa a ser um lugar de medo para essas mulheres”, afirma Debora.Atendimento precárioJoana* sabia dos riscos ao se dirigir a um grande hospital público do DF. Mesmo assim, não teve escolha. Depois de fazer duas tentativas com remédios abortivos, ela ficou seis dias perdendo sangue. “Já estava amarela, com muita anemia, quando decidi ir”, lembra a mulher morena, hoje com 27 anos, mãe de dois filhos. Lá, a pouca atenção dos profissionais livrou-a de alguma denúncia, mas rendeu um diagnóstico errado. “Me deram um remédio para infecção urinária, que não adiantou. Procurei umas amigas e elas me falaram da água inglesa. Tomei e melhorei aos poucos”, destaca Joana, que trabalha como diarista.Depois do primeiro aborto, aos 16 anos, ela recorreu à prática mais três vezes, em um curto espaço de tempo. Chegou a tomar um preparo que incluía boldo e querosene, em certa ocasião. Hoje, casada, mãe de um garoto de 13 e uma menina de três, Joana faz um mea-culpa, mas explica que o desespero toma conta da mulher que se vê diante de uma gestação indesejada. “Acho que agiria diferente se fosse agora. Não sei se teria todos os filhos, mas evitaria engravidar. Naquela época, me faltava juízo”, diz a diarista, que atualmente não descuida do anticoncepcional. Ela acredita que ninguém passa por um aborto impunemente. “Não é por causa de religião, mas acho que um dia serei cobrada. O castigo começa na hora em que você vê o feto, parece um bonequinho, tem que apertar a descarga e torcer para não entupir.”Ao contrário do que prega a crença popular, a experiência do aborto quase sempre é permeada de sofrimento e inquietação. “De todos os processos que já passaram pelas minhas mãos, nenhuma mulher merece qualquer censura em seu comportamento social. Geralmente, são boas mães, as gestações decorreram de relações com parceiros fixos, mas elas temem perder o emprego e enfrentar as dificuldades”, diz o promotor Diaulas Ribeiro, do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. Independentemente de crenças pessoais, completa ele, é preciso considerar nessa discussão a marca “social” da morte e da criminalização do aborto ilegal no país. “As pobres é que morrem e são processadas. A rica vai a Portugal ou a Paris, faz o procedimento todo dentro da legalidade, e volta”, diz.* Nome fictício a pedido da entrevistada.Morte trágica em segredoUm dos processos estudados na pesquisa Quando o aborto se aproxima do tráfico mostra como o medo pode culminar em mortes desnecessárias. Processo com laudos, escutas telefônicas e dezenas de depoimentos detalham os últimos dias de vida de uma mulher de 34 anos, mãe de quatro filhos, que trabalhava como empregada doméstica. Em acordo com o marido, ela pede adiantamento à patroa para comprar o medicamento abortivo. Sangramento intenso é o primeiro sinal de que algo não ia bem. Durante dois dias, segundo o processo, ela mantém uma mangueira introduzida na vagina, periciada pela polícia como “de plástico, transparente, medindo 35cm”. Passados quatro dias de dor, a mulher decide ir ao hospital, sem a sonda vaginal. Menos de 48 horas depois, morre. A filha mais velha, de 13 anos, resume os motivos que levaram a mãe ao aborto: “(Ela) estava trabalhando com carteira assinada e tinha medo de perder o emprego”. 
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