Hospital Universitário Corre Risco de Vida!

MP520 será votada em breve no Congresso colocando em xeque o ensino e o serviço no HU da UFSC.

Texto para o jornal O Pulso, do Centro Acadêmico Livre de Medicina da UFSC.
João Paulo Garibaldi e João Roger Goes Pereira
Na última edição do Pulso, de março de 2011, trouxemos para o debate o tema da Medida Provisória 520 (MP520). Nesta reportagem de capa nossa proposta é continuar o debate com os estudantes sobre o assunto e sobre as possíveis consequências da medida (que deve ser votada no Congresso neste mês de maio) sobre o nosso ensino, os trabalhadores da saúde e o serviço à população nos HUs.
Criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A.
Pouco antes de passar a faixa para a presidente Dilma, em 31 de dezembro de 2010, e já de saída para ser recebido nos braços do povo, o presidente Lula editou e nos deixou de presente a MP520, que autoriza a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.A – EBSERH. A EBSERH é uma empresa pública, de direito privado, que tem como atribuição principal a admi-nistração dos HUs de todo o país, retirando essa        responsabilidade das universidades. Além disso, passa a ser sua responsabilidade a prestação de serviços médico-hospitalares e de serviços de apoio ao ensino e à pesquisa nos HUs.
A MP520 veio para tentar tornar legal a prática de contratação indiscriminada de trabalhadores terceirizados ou via Fundação (no nosso caso via FAPEU) nos HUs, que hoje somam mais de 26 mil contratados. Em 2006, o Tribunal de Contas da União (TCU) declarou ilegal essa situação, dando como prazo máximo o final do ano de 2010 para sua re- solução. O governo teve então quatro anos para fazer concursos públicos e nada fez. No último dia do ano publica então essa medida, que além de não resolver as graves questões de financiamento e contratação de pessoal nos HUs, cria um cenário muito pior para o ensino e o serviço nos mesmos.

Até quando nos orgulharemos de um HU 100% SUS?
Em 2010 o HU da UFSC realizou mais de 140 mil atendimentos ambulatoriais, mais de 3 mil cirurgias e foi responsável por mais de 10 mil internações hospitalares de pacientes de todo o estado. Todos esses serviços foram realizados gratuitamente, no âmbito do SUS, sem qualquer distinção de classe social ou diferenciação no atendimento pelo fato do paciente possuir ou não um plano de saúde.
HU 100% SUS - Até Quando?
Uma das maiores críticas à MP520 é o fato de ela abrir brecha para que os HUs se tornem hospitais “dupla porta” (com a entrada dos planos privados de saúde). Apesar de em seu texto afirmar que a empresa prestaria serviços gratuitos de assistência, em nenhum momento se fala em exclusividade desses serviços. Além disso, como consta na exposição de motivos dos Ministros para justificar a MP, a mesma teria sido inspirada nos “bons indicadores” do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA), que, mesmo tendo sido construído com recursos públicos, já reserva até 30% de seus serviços aos planos privados de saúde (dados de 2007). Muitos justificam essa prática afirmando que os planos privados é que garantem recurso financeiros para o Hospital, porém essa alegação é falaciosa, já que no mesmo ano os planos contribuíram com apenas 6,06% do orçamento.
Assim o HCPA fere frontalmente os princípios norteadores do SUS, de universalidade e equidade, quando os pacientes beneficiários dos planos privados “furam” a fila de espera e recebem atendimento diferenciado (acomodações, alimentação, acesso a visitas) em relação aos pacientes do SUS. No mesmo HCPA a prática da dupla porta acaba afetando o ensino, já que os estudantes da UFRGS não possuem acesso aos andares e leitos dos pacientes privados, reproduzindo a velha prática das escolas médicas de “aprender nos pobres para cuidar dos ricos…”
A presença dos planos privados em hospital público não é exclusividade do HCPA. Em dezembro passado foi aprovado em São Paulo um projeto de lei que reserva 25% dos leitos para pacientes com planos privados, nos hospitais públicos de alta complexidade administrados por OSs no estado. Mais recentemente noticiou-se um aumento de 300% nos atendimentos privados no HC da Faculdade de Medicina da USP, que é gerido por uma Fundação.
Ensino e Serviço sob a lógica de metas        
Com a instituição da EBSERH o HU deixa de  ofere-
cer serviços de acordo com as necessidades da população para o cumprimento de metas pré-estabelecidas. A ideia do cumprimento de metas pode não parecer, a princípio, necessariamente ruim – todos sabemos o quanto temos problemas nos serviços públicos de saúde e no nosso HU não é nada diferente. O grande problema é que com a empresa, por ser de direito privado, toda a lógica administrativa se         prestará a busca do lucro e da produtividade. Mas o que pode ser produtivo num hospital? A doença? A saúde pode funcionar na lógica do privado?
Os HUs são hospitais de alta complexidade. Dados de 2001 demonstram que naquele ano os HUs rea- lizaram 50% das cirurgias cardíacas e neurocirurgias e foram responsáveis por 70% de todos os transplantes realizados no país, demonstrando a importância e a posição estratégica dos mesmos dentro do SUS. A realização de procedimentos como esses e o caráter de instituição de ensino justificam o seu alto custo de manutenção. Realizar tantos transplantes assim pode não ser muito lucrativo, se pensarmos na lógica de uma empresa, devido aos altos custos… Mas então, suspenderemos os transplantes? E como fica a Integralidade do serviço, outro princípio norteador do SUS?
Funcionando na lógica da produtividade, com trabalhadores também submetidos ao cumprimento de metas, não é difícil enxergar que os HUs passarão a assumir um caráter muito mais de hospitais de serviço, e que o ensino (sua função primordial e para a qual foram concebidos) ficará em segundo plano.
Quebra da Autonomia Universitária
Caso instituída, a EBSERH irá administrar todos os HUs do país, passando então a intermediar a relação dos hospitais escola com as universidades (hoje os HUs são órgãos suplementares das universidades e estão visceralmente ligados às mesmas). Com isso, a MP520 quebra o princípio da autonomia universitária, prevista no artigo 207 da Constituição Federal, que garante às universidades brasileiras a formação de profissionais qualificados e socialmente responsáveis, com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.
Os HUs são hoje responsáveis pela pesquisa de ponta no campo da saúde no país; portanto, perder a autonomia sobre o que e para quem pesquisar é algo grave. O desenvolvimento e disponibilização à população brasileira de transplantes de medula óssea,  por exemplo, somente foi possível nos ambientes acadêmicos dos HUs.
Quando descreve quais serão os recursos da EBSERH, a MP520 prevê que o seu financiamento poderá vir de diversas fontes, inclusive de pessoas jurídicas de direito privado (outras empresas). A Fundação Zerbini, criada para dar suporte ao Incor (parte do HC da USP), tem entre a sua lista de parceiros apoiadores empresas como o Instituto Avon, o Grupo Alfa, a Fundação Ford e a Dixtal Biomédica. Fica então a reflexão: com tais financiamentos, para quem e com qual finalidade o Incor, um hospital público, realiza suas pesquisas?
Um último detalhe sobre a relação HU, universidade e o nosso    ensino: no texto da MP está previsto que entre as suas finalidades está a prestação de serviços a instituições federais de ensino superior e instituições congêneres. Mas quem são as tais “instituições congêneres”? Será que passaremos a dividir o ensino no HU da UFSC com  instituições particulares, as quais poderão pagar para usufruir deste “serviço”? Todos os estudantes, independente se de escola pública ou particular, devem ter acesso a um hospital de ensino de qualidade. Porém, hoje no HU, nós nem mesmo passamos por todos os estágios no Internato (alguns são sorteados) por falta de estrutura.
Contratação de trabalhadores via CLT e o nosso ensino
A contratação de trabalhadores da saúde para os HUs com a EBSERH se dará via Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), que é o regime de contrato das empresas privadas, e não mais pelo Regime Jurídico Único (RJU), sob o qual são regidos os funcionários públicos. Como celetistas, além de submetidos a metas e produtividade, esses trabalhadores também passarão a estar sob a sombra da instabilidade, já que a  garantia de leis trabalhistas estão reduzidas nesta situação. Com a possibilidade de contratos temporários há a quebra do vínculo do trabalhador com seu local de trabalho, característica tão importante quando pensamos nas especificidades do trabalho em saúde.
Os trabalhadores, antes ligados à universidade, agora passarão a ter seu vínculo apenas com a empresa. Qual será o compromisso dessa nova ca-tegoria de profissionais com o ensino? Como isso afetará a qualidade do nosso ensino nos HUs?
Mas e agora José, o que fazer?
Como podemos notar, a MP520 não só não resolve a questão de recursos humanos e financiamento dos HUs, como também agrava ainda mais a situação de precarização do ensino e do serviço nos mesmos.
Neste momento cabe a nós, estudantes preocupados com o ensino em saúde e com  o serviço à população, nos mobilizarmos pela derrubada    desta MP, nos juntando-nos às diversas entidades que já possuem deliberação contrária a mesma e lutando por condições adequadas de ensino e serviço nos Hospitais Universitários.
E como anda o nosso HU?
• Vários serviços essenciais já estão totalmente terceirizados, a exemplo da limpeza, da segurança e da lavanderia.
• Em 2010, havia um total de 1678 profissionais, sendo 1.205 (72%)  efetivos, 318 (19%) tercerizados  e 152 (9%) contratados via FAPEU.
• Com a terceirização da segurança, os estudantes tem tido vários pro-blemas de acesso ao HU. Por que não temos acesso à porta do TOCE?
• Em 2010 havia 17 leitos desativados, além de 10 outros leitos na nova área da UTI construída, nunca ativados por falta de recursos humanos.
• A Emergência está superlotada e em muitos momentos fica apenas um médico responsável por todo o trabalho. Pacientes que chegam a esperar 6h ou mais por atendimento é algo muito frequente.
• Com a superlotação das enfermarias, vários pacientes estão internados em macas improvisadas espalhadas pelos corredores da emergência, o que aumenta ainda mais o trabalho dos médicos de plantão.
• Os estudantes de medicina tem várias aulas práticas com até 10 estudantes por professor/leito. Até que ponto isso é didático? Até que ponto é ético com os pacientes? Vascular, Proctologia, Semiologia, entre outras, são algumas das disciplinas em que isso tem ocorrido.
Será que a MP520  irá resolver esses problemas que vivenciamos no dia-a-dia do HU? Ou irá agravá-los ainda mais?
Hospitais Universitários: A Ponta do Iceberg
A implementação da EBSERH vem consolidar uma tendência do governo brasileiro de lançar mão de direitos civis, como a saúde e a educação, para atender as demandas da iniciativa privada. Como e Por quê?
A precarização do HU, e do SUS como um todo, vem de uma falta de compromisso do Estado brasileiro em estabelecer um financiamento adequado, fornecer um ambiente jurídico propício à contratação de força de trabalho através de concursos públicos, profissionalizar a gestão e consolidar o controle social das políticas de saúde. Ao contrário do que se espera do Estado, ele age de forma a dificultar a gestão através do subfinanciamento, dificultar a contratação de pessoal e sucatear a força de trabalho forçando a contratação através da iniciativa privada. Não é de se espantar então que o Hospital Universitário (e o SUS) estejam em uma situação caótica. E aí quando parece não haver mais esperança para essas entidades, o governo aparece com uma “solução” para o problema, que se analisarmos a fundo, ele mesmo criou.
É importante percebermos que o discurso de “otimização da gestão em saúde” nada tem a ver com a melhoria do serviço prestado à sociedade, pois como pudemos concluir, essa otimização só é possível se o Estado tiver um compromisso real com ela. Esse discurso na verdade revela a implementação de uma reforma do Estado brasileiro que está em curso.
Essa reforma, que é baseada em diretrizes internacionais, tem como objetivo transformar o Estado em um mero mediador dos inte- resses da iniciativa privada, transformando todas as áreas da sociedade em mercadoria com preço de custo e preço de venda, visando maximizar os lucros.
Um dos exemplos da relação conflituosa do público com o privado na saúde é o fato de que as empresas de planos de saúde (a iniciativa privada da saúde) financiaram a campanha eleitoral de 75 candidatos eleitos, como comprova pesquisa realizada pela Agência de Notícias da Aids. E aí fica a pergunta: a que interesses esses represen-tantes da sociedade atendem?
Acontece que a Saúde e a Educação não podem funcionar nessa lógica, pois são DIREITOS básicos para se manter uma vida digna e devem ser fornecidos pelo Estado atendendo o interesse de TODA a sociedade. Porque no final, quem acaba sofrendo com essa reforma?

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