Halley Margon |
Ter, 15 de Fevereiro de 2011 10:05 |
"Antes havia um leitor. Hoje há um consumidor que se recusa a fazer esforço [de compreensão]. É como se a ignorância fosse uma virtude." Inácio Araujo, crítico de cinema Se pudéssemos enxergar o bem e o mal como categorias sem impurezas talvez devêssemos reposicioná-las no quadro exposto em nossa bem fornida sala de estar. Porque quase nunca estão onde deveriam estar. Há filmes que por meio da ironia revelam o quanto na cidade moderna (e pós-moderna) as instituições que deveriam defender o bem se comportam como representantes do mal e, contrariamente, como figuras tidas como expressão do mal agem de acordo com as mais basais noções do bem. Alguns faroestes procedem dessa maneira e há uma boa safra de filmes mais ou menos recentes, de variados gêneros, fazendo o mesmo. Em "Poder Absoluto" de Clint Eastwood, 1997, um sofisticado ladrão de jóias (o próprio Eastwood) testemunha por acaso o assassinato meio que acidental da jovem esposa de um milionário pelos seguranças do presidente dos Estados Unidos (Gene Hackman). A partir de um tão inusitado duplo acidente de trabalho o thriller delineia um nítido posicionamento moral. Reduzida à condição de conto moral a trama poderia estar contida na seguinte frase: o bandido age como mocinho e o mocinho como um chefe de quadrilha. Ou, de outra forma: os representantes do poder, da lei e da ordem rotineiramente são os verdadeiros crápulas. Condensado a um tal ponto o filme certamente perderia eficácia e interesse. Mas se observado para além de seus atributos de mero entretenimento é esta a idéia que conduz a narrativa. Pelo menos desde "No Tempo das Diligências" de John Ford, 1939, mas certamente desde muito antes, o cinema, como toda arte, investe boa parte de suas energias na construção de tramas com o mesmo sentido. Para o crítico André Bazin, por exemplo, o gênio formal de Orson Welles não escamoteia a "mensagem intelectual e moral" de seus filmes, muito pelo contrário. Mas, alerta, se "fossem apenas a expressão desse ponto de vista (moral), não passariam de filmes de tese ou melodramas" (em "Orson Welles", Jorge Zahar Editor, 2006). Num outro livro Bazin diz que o filme de Ford "nos mostra que uma prostituta pode ser mais respeitável do que os beatos que a expulsaram da cidade..., que um jogador debochado pode saber morrer com a dignidade de um aristocrata, ... (que) um fora-da-lei perseguido... (pode) dar provas de lealdade, de generosidade, de coragem e de delicadeza, enquanto um banqueiro... foge com o cofre" ("O Cinema – Ensaios" – Editora Brasiliense, 1991). Noutro dos filmes de Eastwood, o faroeste "Os Imperdoáveis", de 1992, pelo qual Bazin certamente teria se encantado (Bazin – que morreu precocemente, em 1958, aos 40 anos de idade – escreveu pelo menos três extraordinários artigos nos quais caracterizava o faroeste como "o cinema americano por excelência" – estes três pequenos ensaios estão no livro citado acima), o mesmo esquema está presente. Desta vez com força dramática muito mais poderosa e um resultado estético simplesmente espetacular. Não há quem não tenha se deliciado com a saga do velho pistoleiro (assassino de aluguel) aposentado William Munny (Eastwood), contratado pelas prostitutas da sombria e fria Big Whiskey para vingar um delas, contra o xerife da cidade (o mesmo Hackman de "Poder Absoluto"). Gângsteres Michael Mann é outro dos atuais diretores que escolhem tratar dessa inversão escondida sob a superfície brilhosa da cidade. É o caso de "Inimigos Públicos" (com Johnny Depp), de 2009, na qual acompanha a trajetória do famoso gângster John Dillinger. Abro um parêntesis apenas para lembrar que Mann é o diretor de "O Último dos Moicanos", de 1992, no qual se pode assistir a uma das sequências cuja montagem e harmonia com a trilha sonora certamente poderia figurar entre as mais bem sucedidas e geniais da história do cinema. Falo daquela que se inicia no exato momento em que Daniel Day Lewis dispara contra o oficial britânico que está sendo queimado na fogueira e se encerra, quase na última cena, com a morte de Magua, o guerreiro yuron, por Chingachgook, justamente o último dos moicanos ("the last of moycan people"). O filme, na realidade, parece querer fincar seus procedimentos exatamente neste que é um dos elementos essenciais do bom cinema: a montagem. Sobre o qual, respondendo a Bazin, Orson Welles dizia ser "o único momento em que (o diretor) controla completamente a forma do filme". E completava: "Para o meu estilo, para minha visão do cinema, a montagem não é um aspecto, é o aspecto". A montagem era quase que a essência do filme também para outro dos seus gênios, o russo Sergei Eisenstein. Mann é também o diretor de "O Informante" (com Russel Crowe e Al Pacino), sobre a guerra da indústria tabagista contra um de seus ex-executivos que decide botar a boca no trombone e denunciar seus procedimentos criminosos contra a saúde pública em geral e os viciados em nicotina em particular. Procedimentos em tudo semelhantes aos adotados pelos grandes cartéis das drogas ilícitas – algumas das quais são infinitamente menos maléficas que o famigerado cigarro. E Nós, os Inocentes Espectadores de Cinema? Mas, nós, os espectadores como representação do grande público (ou do "espectador médio", nas palavras de Bazin) que vai ao cinema, será que nos damos conta do que está sendo dito e destacado na tessitura dos filmes? E destaco o cinema dos outros meios porque de todas as formas de expressão artística o cinema é provavelmente aquela que mais incorpora ao desenrolar dramático o entorno, a ambientação, os elementos que, afinal, se servem para nos seduzir e convencer servem também para desviar o foco do olhar e desorientar a percepção quanto aquilo que está sendo dito (o quê da coisa). (Talvez tenha sido este o princípio utilizado por Lars von Trier ao abolir todos os elementos cenográficos em "Dogville" – como sabemos, a cidadezinha do filme é representada apenas por linhas brancas pintadas no chão.) O que, por exemplo, se pode enxergar para além do espetacular aparato de imagens e sons que envolve e praticamente acoberta a trama de um filme como "A Origem"? Noutras palavras, qual o significado do drama (seja o mostrado no cinema, seja na literatura ou qualquer outro meio) para a formação da consciência média contemporânea? Incorporamos o alerta e tiramos dele as devidas lições? Na realidade, tenho tremenda dificuldade de acreditar que exista de fato outro significado que não o de produto de consumo rápido e imediato. Puro entretenimento, mero passatempo. Por mais que se construam como obra de arte e mesmo quando tragam quase que explicitado um posicionamento moral. Evidentemente não se pode responsabilizar o filme de qualidade pela qualidade do espectador que o assiste. É claro que um filme como "Cidadão Kane" está "decididamente acima da idade mental do espectador americano", como diz Bazin. Na realidade, considerada a idade mental dos prósperos cidadãos do mundo pós-moderno, não será preciso ser um Orson Welles para realizar filmes definitivamente inatingíveis e inócuos. Bastará que se faça um thriller com algum conteúdo. Nós, os famigerados espectadores, temos às vezes uma infinita capacidade de ignorar aquilo que nos incomoda e de deglutir somente o que não nos exige esforço. Iñarritu e o Espectador Toda vez que vejo declarações como a do excelente cineasta mexicano Alejandro González Iñarritu de que "é preciso entreter, contar histórias que mantenham o espectador atento" fico pensando se o espectador não é visto como um autômato sem vontade própria, cuja atenção é mantida pela hábil manipulação da história por parte do autor e não por resultado do seu próprio desejo. Pergunto-me simultaneamente qual terá sido o esforço de James Joyce para capturar a atenção do leitor de "Ulisses" que não o de simplesmente instigar-lhe a própria curiosidade e respeitar sua inteligência. |
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