PEDRO ABRAMOVAY E UM RÉQUIEM PARA A POLÍTICA CRIMINAL DO GOVERNO DILMA


A notícia de que Pedro Abramovay foi demitido da Secretaria Nacional de Drogas é o primeiro sinal das piores expectativas que se avizinhavam desde que Dilma assumiu o Planalto em matéria de política criminal. Se havia dúvidas acerca da gradual e cada vez mais visível transição da preponderância do realismo de esquerda no Governo Lula (refiro-me, para os leigos, a políticas de prevenção à violência tal como o PRONASCI, que investem em melhorias na polícia, programas educativos, políticas de redução de danos etc.) para a esquerda punitiva no Governo Dilma, elas hoje parecem ter acabado.

O que Pedro Abramovay fez de tão grave para ser demitido? Simples, declarou que os pequenos traficantes (leia-se, a juventude pobre e negra – geralmente entre 13 a 25 anos – das favelas brasileiras que vende drogas para toda sociedade, inclusive boa parte da “de bem”) não deveriam ser encarcerados.
A situação surreal, no entanto, deve ser explicada, tal como Kafka dedicou longas páginas para narrar o absurdo que, no entanto, é o próprio mundo real em que vivemos. Respeito muito amigos petistas – alguns conheço pessoalmente, outros estão por aí na blogosfera – que depositaram severas esperanças em Dilma como legatária do Governo Lula, em especial naquilo que foi de melhor: eliminação da miséria e redução da desigualdade social. No entanto, Dilma já vinha mandando vários sinais negativos, e a área criminal – para um ponto de vista de esquerda – hoje se apresenta como a pior. Atribuo basicamente isso a três razões:
1) A “Guerra do RJ” – o “sucesso” da entrada do exército no Complexo do Alemão, aplaudido inclusive por parte da sociologia crítica nacional (com pessoas que eu admiro e respeito profundamente, mas discordo com veemência), apresentou louros políticos inquestionáveis para Sérgio Cabral e Dilma. Ficou claro que o antibelicismo radical não seria matriz da política criminal baseada nas UPPs. Aliás, “Tropa de Elite” – com seu sensacionalismo fascista – já havia preparado esse clima para esse evento, tornando o BOPE um símbolo nacional (o BOPE, uma tropa de extermínio). Aliás, a classe média só não aprovou mais porque faltou o banho de sangue que Capitão Nascimento tinha prometido. Se não veio, bem, ok, e ainda agradamos nossos amigos da esquerda que comemoram o “Estado de Direito” na favela.
2) A nomeação de José Eduardo Cardozo e Mário do Rosário – nomear para o Ministério da Justiça e para a Secretaria dos Direitos Humanos dois políticos que acreditam que a pauta dos direitos humanos no Brasil é o aspecto mais policialesco e caricato do “politicamente correto” foi também vergonhoso. Maria do Rosário, em especial, prestou um desserviço monstruoso ao Brasil ao ser responsável pela mudança nos crimes sexuais, prevendo a figuras estapafúrdias e mantendo moralismos como a criminalização da casa de prostituição (não é piada, isso é crime no Brasil!) e cometendo erros técnicos crassos.
3) O recuo de José Eduardo Cardozo das declarações de Abramovay: se era um bom sinal a troca de nome da Secretaria Nacional Anti-Drogas (nome tipicamente vinculado à War on Drugs de Nixon e Reagan) para Secretaria Nacional de Drogas, e transpô-la da pasta da defesa para a justiça (embora o ideal fosse para a saúde), tudo foi rapidamente derrubado. Pedro Abramovay disse o óbvio: é preciso parar com a monstruosa inflação carcerária no Brasil, quarta maior população prisional do mundo, atrás apenas dos EUA, China e Rússia, da qual quase 30% são relacionados com a política de drogas. O encarceramento dos pequenos traficantes só piora a situação: agudiza conflitos, não resolve nem o problema do uso problemático de drogas nem o do comércio, provoca o impacto da passagem no cárcere no preso, alimenta as fileiras do “crime organizado” (facções que dominam as prisões, como o PCC), destrói as opções de vida do sujeito e é mais do que tudo hipócrita: vivendo na periferia e com poucas opções, o sujeito (é bom lembrar que geralmente aos 12, 13 anos) vê a traficância como uma opção de vida atraente e acaba embarcando nela. É preciso ver que as gravíssimas questões biopolíticas da política de drogas (o higienismo da abstinência, a intolerância com a diferença, a gestão do corpo do drogado etc.) hoje em dia são menos importantes que a thanatopolítica da guerra às drogas, que se traduz como verdadeira política de extermínio no Brasil. Todo mundo – mesmo uma parte da esquerda menos interessada na questão criminal – dá de ombros para essa política exatamente porque se trata da vida nua, ou seja, da vida descartável.
É óbvio que todas as patrulhas reacionárias e obscurantistas iriam se revoltar contra essa posição. O moralismo atroz que se manifesta no discurso que justifica a guerra às drogas – para qual concorrem os mais diversos “empresários morais” – somados à ignorância da população acerca do que está em jogo e o clima de pânico moral criado pela mídia certamente trariam resistência. Mas o ridículo foi o recuo covarde, minguado, poliqueiro de um Ministro da Justiça que, infelizmente, não teve coragem para dar um basta ao genocídio da população pobre em andamento. Em vez disso, prefiriu aderir ao discurso mais rasteiro e fazer aquilo que Elena Larrauri chama de “populismo punitivo”.
Se observamos o marcante artigo escrito por Maria Lucia Karam há mais de dez anos atrás, quando anunciava a esquerda punitiva, podemos observar que se trata exatamente da política adotada pelo Governo Dilma: “combate” ao crime de colarinho branco, aos crimes vinculados aos movimentos sociais (racismo, violência contra a mulher etc.) e “combate ao crime organizado” (o cifrão que Maria Lucia tão bem colocou como uma simples manobra retórica para justificar políticas de lei e ordem típicas da direita). A ênfase no realismo de esquerda típico do Governo Lula com o PRONASCI vai perdendo peso a cada dia para o punitivismo de esquerda, a aposta no sistema penal como mecanismo de legitimação do poder político-eleitoral.
O detalhe é que – como o amigo Marcelo Mayora apontou no twitter – o próprio Ministério da Justiça encomendou pesquisa sobre o tema que lhe indicava o caminho da descarcerização. Não importa que os setores mais retrógrados e cada vez mais ignorantes do mundo jurídico tachem a pesquisa de “garantista” ou algo do gênero; é uma pesquisa científica, com dados claros e conclusões importantes, e quem nesse caso sofre da mais fanática cegueira ideológica são esses próprios conservadores (agora também obscurantistas: odeiam “teorias” e a “academia”; em vez disso, propõe a prática que se dá no meio da papelada dos processos e do ar condicionado dos fóruns, como se isso fosse a vida real). O Ministério da Justiça agora joga fora os dados que ele próprio coleta em nome do populismo punitivo.
Na prática, Dilma está numa posição bem parecida com Bill Clinton nos anos 90. Clinton sabia que a pena de morte era a questão da maior densidade eleitoral, tendo sido responsável pela derrota do Partido Democrata nas eleições anteriores. Aderindo ao “pragmatismo”, resolveu ele próprio se mostrar “duro” e executar vários condenados, tendo por isso sido eleito. Na prática, o mega-encarceramento e as operações bélicas que Dilma e o Min. José Eduardo Cardozo estão aderindo pouco diferem disso. Todo o resto é pequeno diante da Guerra em andamento.

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