Ai, não me bate doutor!


Este artigo é uma colaboração especial de Flavia Alli*
“Apanhei do meu pai, apanhei da vida, apanhei da polícia, apanhei da mídia”. É recorrente encontrarmos músicas funk que colocam a mídia lado a lado aos aparelhos repressores ou instituições que conotem ideia de violência física. A violência subjetivada nesta música – de Cidinho e Doca, “Não me bate doutor”-, é mais uma das centenas que retratam o cotidiano de quem vive na favela.
A criminalização do funk na mídia (lê-se aqui mídia hegemônica) é prática histórica da sociedade burguesa na exclusão social e racial¹ e, hoje, na criminalização das drogas. Sem levar em conta o contexto econômico e social que vivem as comunidades consumidoras e promotoras da cultura funk, a mídia volta e meia associa este gênero musical à criminalidade. O funk é um prato cheio para as páginas policiais e jamais para os cadernos de cultura, principalmente na cidade do Rio de Janeiro, berço do batidão.
O Estado ausente nas favelas desde o inicio do século XX cedeu espaço à territorialização pelo tráfico de drogas nos anos 1980. Lógica do sistema capitalista implantado no Brasil, onde a sobrevivência se dá somente através do lucro, o tráfico de drogas fez gerar mínima renda em locais onde se vivia à margem da sociedade. Sem garantias mínimas do Estado – como educação, segurança, esporte, cultura, saúde, saneamento, transporte -, é neste momento que o tráfico surge como alternativa, muito embora se dê apenas por uma parte, e não pelo todo.
Se o funk carioca nasce por volta de 1970, com os bailes black nas favelas, é somente em 1990 que ele chega aos jornais com a criação de um produto midiático que perpetua até hoje no imaginário social coletivo: os “arrastões”. Nesta época, galeras de bairros como o Vigário Geral encenavam na zona sul embates, um ritual bem conhecido nas favelas. Entoando gritos como “É o bonde do mal de Vigário Geral”, a mídia estigmatizou esta tradição dos jovens que ocorria há mais de uma década, declarando que eram assaltos realizados por funkeiros. Apesar de que na zona sul os mesmos rituais eram realizados por galeras da classe média, o funk não escapou da estigmatização por parte da mídia, por se tratar de jovens negros e pobres. Para agravar tal quadro, os meios de comunicação, na época, associavam os “arrastões” à violência ocorrida dentro dos bailes e ao comércio de drogas ilegais. A brecha aberta ao tráfico, associado ao funk e às redes de solidariedade culminam para a personificação de bandido na figura do funkeiro.
A grande mídia, como sustentáculo do sistema capitalista, nunca buscou apresentar o funk como cultura, e sim como palco de atividades ilegais, além de subestimar suas canções². Nos anos 2000, leis severas são criadas e empurram o funk de volta às favelas, as quais resultam no fechamento de centenas de bailes, criminalizando seus agentes culturais e seus modos de vida. A troca do Estado do Bem Estar Social pelo Estado Penal repreende violentamente os funkeiros e as comunidades que participam de tal cultura.  Em 2009 é aprovada na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ) a Lei 5543 que reconhece o funk como movimento cultural e musical de caráter popular, além de assegurar suas manifestações. Apesar disso, o funk não escapa do estereótipo que lhe foi criado. As Unidades de Polícias Pacificadoras (UPPs), instaladas em algumas favelas do Rio de Janeiro há dois anos, proibiram as festas nas comunidades. Foi apenas em agosto deste ano que o primeiro baile funk em uma favela na presença de UPP se realizou, e com inúmeras restrições, entre elas a ausência de canções com apologias ao crime.
A criminalização do funk na mídia é tática para o mantimento da hegemonia na sociedade. No século XIX as tradições quilombolas precisavam passar pelo crivo da sociedade burguesa. No século XX, o samba foi reconhecido como cultura somente após o nacionalismo de Getúlio Vargas. O funk, com raiz na cultura afrodescendente e nas camadas pobres, levou quase meio século para ser legalizado. Por se tratar de uma cultura popular, fora da margem de lucro da indústria cultural, o batidão que fala sobre a criminalidade, as condições precárias de vida nas favelas e a violência não faz parte dos planos da mídia burguesa, por ser contra hegemônico. As associações feitas pela mídia entre funk e criminalidade refletem na estigmatização dos funkeiros e da comunidade (maioria composta de trabalhadores), as quais deixam marcas indeléveis sobre elas. Em um primeiro ponto, é possível se observar que suas canções são vistas apenas sob a perspectiva do gênero “putaria”. Em um segundo momento, os bailes e os locais que se realizam são vistos como palco de práticas ilegais. Esta situação pode ser encontrada em matérias jornalísticas sobre o caso de Vagner Love, o qual foi filmado pelo Fantástico, no início deste ano em uma festa na Favela da Rocinha, na presença de traficantes.
O site G1, por exemplo, classificou o episódio na editoria Tráfico de Drogas, muito embora o jogador não estivesse consumindo drogas. No site Veja Rio, da revista Veja, o próprio veículo de comunicação tratou de julgar o esportista através da moral burguesa. Classificada na editoria “Comportamento” e com o título de “Ligações Perigosas”, a mídia reduz a capacidade de discernimento e de pensamento de Vagner Love por participar de um baile funk, sem levar em consideração o histórico do jogador, o qual tem origem humilde, tampouco a legitimação do funk como cultura.
Se de um lado a mídia hegemônica, detentora dos grandes meios de comunicação,  mantém o imaginário do funk ligado à criminalidade por vir das chamadas “classes perigosas”, por outro, o público absorve. No Rio Grande do Sul, por exemplo, o Conselho Tutelar de Caxias do Sul propôs a proibição das músicas funk em escolas na cidade, neste ano. O jornal Pioneiro, do grupo RBS, em matérias sobre o caso não se deu ao trabalho de desconstruir a imagem do funk pornográfico ou de violência, tampouco entrevistar um funkeiro. Sob a justificativa de que o funk promove a “precocidade sexual”, a mídia reproduz o discurso da cultura elitista apoiada no discurso da autoridade que criminaliza o funk, quando o que está em jogo é o acesso à informação e à educação sexual para/com os adolescentes, e não o conteúdo das canções e a generalização do estereótipo já criado de uma cultura.
Criminalizar o funk é, portanto, tática da cultura da mídia, que busca manter a hegemonia da sociedade criminalizando tudo o que não diz respeito a sua própria cultura. A mesma desconsidera o contexto social dos agentes culturais e dos consumidores do funk e estigmatiza não só tal cultura, mas também a pobreza e as drogas. De maneira oligopólica, por controlar as informações em larga escala no país, a mídia hegemônica se apresenta como força repressiva tanto quanto os aparelhos coercitivos do estado (leis e polícia, por exemplo), onde o primeiro oprime violentamente de forma moral e ideológica, e o segundo de forma legal e física. Resta apenas aos funkeiros, cantar em seus “proibidões”, a realidade que os meios de comunicação tentam esconder a fim de manter a ordem social. “Apanhar da mídia” é uma pequena parte, mas que promove há décadas a desigualdade social e a exclusão racial.

*Flavia Alli é estudante de jornalismo (www.chefatamorgana.blogspot.com /www.twitter.com/flaviaalli)

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