Para 91% da população, quem comete violência doméstica tem que ser investigado independente da vontade da vítima

A violência doméstica é um grande problema da nossa sociedade. Essa é a opinião de 81,9% dos brasileiros e brasileiras, segundo dados divulgados hoje pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Apenas 1,7% das pessoas acreditam que essa questão não exista e outros parcos 14,9% encaram isso como algo pontual e restrito a algumas mulheres.

Essas e outras informações estão na pesquisa sobre igualdade de gênero do Sistema de Indicadores de Percepção Social (SIPS) desenvolvido pelo Instituto. Apesar de não ser extenso, o estudo traz resultados interessantes.

Na questão “Você conhece a Lei Maria da Penha?”, por exemplo, 75,7% da população responderam positivamente, o que é um avanço em relação ao ano passado, quando esse número chegava a 68%, de acordo com indicadores do Ibope/Themis. Ao mesmo tempo, 78,6% acreditam que a Lei pode evitar ou diminuir a violência contra as mulheres, demonstrando uma grande confiança no sistema judiciário.

“As respostas indicam que a população se encontra bastante sensível ao problema, e que tem caminhado na direção de afastar o pernicioso ditado popular de que ‘em briga de marido e mulher ninguém mete a colher’”, afirmam os pesquisadores responsáveis pelo SIPS. 

Porém, o IPEA faz um alerta: é possível que, nesse caso, as pessoas procurem dizer o que é “socialmente desejável”. É mais ou menos como naquela pesquisa sobre racismo em que a ampla maioria das pessoas diz que não é racista, mas que conhece alguém que é e, no fim das contas, os números não batem. 

Além disso, apesar da ampla divulgação da legislação atual, sua utilização continua restrita. Na pesquisa de 2009 do Ibope/Themis indicava que 42% das vítimas de ataques ou hostilidades não costumam procurar ajuda. Na enquete do IPEA deste ano, apenas 30,9% das pessoas conheciam alguma mulher que utilizou serviços de apoio tais como delegacias de atendimento à mulher e casas abrigo.

Isso me lembra dois casos. O primeiro, uma entrevista que fiz com a socióloga e professora Heleieth Saffioti, que afirmou que a Lei Maria da Penha não iria “pegar”: “É preciso reeducar homens e mulheres. Esta Lei criminalizou o fenômeno, por meio de seu enquadramento judicial”, dizia. Autora de inúmeros livros, entre eles Gênero, patriarcado e violência(Fundação Perseu Abramo), Saffioti lembrou que, logo no início da implementação da Lei, ela participou de um debate em Mato Grosso do Sul, onde apresentou sua posição contrária ao texto. Ao final, uma delegada da região veio conversar com ela dizendo que discordava, mas que tinha se retirado da palestra para resolver exatamente uma situação que a professora havia previsto: uma mulher, que havia denunciado o marido horas antes, voltara à delegacia e tinha conseguido entrar na cela dele, onde o casal fez as pazes.

Outro caso foi uma conversa que tive com uma juíza que, frustrada, relatou-me não ter conseguido aplicar a Lei Maria da Penha. Não por falta de casos em sua comarca, pelo contrário. Mas, segundo ela, as mulheres que denunciavam seus companheiros voltavam atrás na decisão dias ou apenas horas depois. "Ele é uma boa pessoa, doutora", disse uma. E não se tratava de uma dependência financeira que "prende" as mulheres a homens violentos, como poderíamos pensar antigamente. Muitas delas são arrimos de família hoje em dia ou pelo menos estão inseridas no mercado de trabalho, mesmo que de forma precária.

Talvez em função de situações semelhantes a essa que 91% da população acredita, de acordo com o IPEA, que seja preciso investigar as denúncias de agressão mesmo que a vítima não apresente queixa ou retire-a em seguida. Apenas 3,5% defendem que a vontade da mulher deva ser respeitada. 

Para os pesquisadores, “essa opinião ajuda a iluminar um dos propósitos da lei, que foi justamente o de, numa questão candente da vida social, tornar a ação pública incondicionada, e não mais partir de uma idéia de ‘respeito à vontade da vítima’”. Eles alertam também para o fato de que, numa situação de agressão, muitas vezes não se percebe o grau de submissão, em especial pelo fato disso ocorrer numa relação íntima, o que pode dificultar – e muito – a denúncia.

Dados como esse são fundamentais para, quiçá, por fim a esse impasse na aplicação da Lei Maria da Penha apontado por intelectuais como Saffioti e visto na prática pela juíza que eu citei. Se os homens forem investigados por suas ações independentemente da vontade da vítima, é possível que a taxa vergonhosa de condenação de apenas 2% mude. E, talvez, um dia, seja possível sairmos do patamar igualmente triste de uma mulher ser espancada a cada 15 segundos no país e uma assassinada a cada duas horas. Não que eu acredite piamente na justiça punitiva como forma de resolver problemas sociais e culturais, mas pelo menos iríamos mudar o nível do debate e ver algum tipo de movimentação prática para alterar esse cenário.



 Escrito por Maíra Kubík Mano às 11h20


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