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ARTIGO NA VEJA SOBRE GAYS, ESPINAFRE E CABRAS ME DEIXOU CABREIRA


O artigo publicado esta semana na Veja pelo diretor de redação e colunista J. R. Guzzo é baixo até para os famosos padrões do veículo semanal. Não é nada que a gente não ouça diariamente, mas dói os olhos ver algo tão rasteiro publicado na revista de maior circulação nacional. O texto “Parada gay, cabra e espinafre” pode ser resumido a “Deixem de mimimi, gays! Vocês já têm todos os direitos, e agora querem direitos especiais!”. Obviamente a opinião de Guzzo deve ser idêntica para mulheres, negros, trans, e qualquer grupo historicamente oprimido. Vivemos em total igualdade! Quem falou? A Veja, ué.
Na realidade, não sei se o artigo foi escrito por alguém que não entende bulhufas do assunto ou que entende e quer se aproximar da opinião de seu leitorado cada vez mais conservador. O velho dilema: ignorância ou má fé? Ou um pouquinho dos dois? Pra começar, é estranha a insistência em usar homossexualismo. Certo, um montão de gente não sabe que o termo correto é homossexualidade, porque o sufixo ismo denota doença. Eu só fui aprender isso quando comecei o blog, quase cinco anos atrás. E dei umas derrapadas até alguém me apresentar o exemplo definitivo: se não falamos heterossexualismo, por que homossexualismo? Que pessoas comuns não saibam disso até vai, mas faz tempo que o movimento LGBT vem tentando ensinar a mídia a adotar termos menos ofensivos.
É típico dos conservadores centrar-se apenas no indivíduo. Assim, não existe contexto, não existe condição social, não existe história, nada. Fracassos e sucessos podem ser creditados a indivíduos, naquela ideologia que todos estamos em condições iguais. Para Guzzo, não há comunidade ou movimento gay, pois o que temos são indivíduos. Se ele não acredita na existência do movimento gay, tampouco deve acreditar que o movimento feminista exista. 
Só porque os movimentos são plurais e abrigam várias correntes, às vezes antagônicas, não quer dizer que não existam, pô. Somos pessoas únicas e diferentes, mas fazemos parte de um movimento. E, assim como eu não sou apenas mulher e feminista, ser mulher e feminista faz parte da minha identidade. Assim como ser gay e ativista faz parte da identidade de quem está no movimento LGBT. É uma identidade política. Isso é o básico do básico. Não somos fortes individualmente, somos fortes socialmente, como grupo. Sério, só porque a direita é individualista ao extremo e não consegue se mobilizar, isso não significa que a esquerda -– e movimentos sociais estão ligados a direitos humanos e à esquerda –- não consiga. 
Mais adiante Guzzo confunde “não gostar” com discriminar, desrespeitar, maltratar. Aí já é má fé mesmo, não é possível. Desde quando gays, ou mulheres, ou negros, ou trans, lutam para “serem gostados”? Se uma pessoa tiver pensamentos preconceituosos, mas sem traduzi-los em palavras ou ações, não saberemos que a pessoa é preconceituosa. Porque alguém é homofóbico, ou machista, ou racista, ou transfóbico, pelo que fala e pelo que faz, não pelo que pensa. Trocando em miúdos que o autor entenda: uma coisa é não gostar de espinafre, não ter relacionamento com espinafre, e, se alguém te oferecer espinafre, dizer educadamente, “Não, obrigado”. Outra coisa é dizer que espinafres são inferiores a brócolis, fazer leis que se aplicam a todas as verduras, menos aos espinafres, sair por aí cortando espinafres, tratar espinafres com insultos espinafróbicos, ensinando as criancinhas a atacar qualquer espinafre que aparecer na merenda escolar.
É inacreditável que um sujeito com uma coluna numa revista argumente nesse nível, dizendo que homofobia não existe porque, na realidade, matam-se muito mais héteros do que gays. É o mesmo que dizer que misoginia não existe, porque muito mais homens morrem por causas violentas que mulheres. Filho, héteros não são mortos por serem héteros. Homens não são mortos por serem homens, ou por serem vistos como propriedade de outros homens. Não são crimes de ódio. Se sou assaltada na rua, isso é violência urbana, não machismo, e qualquer um está sujeito a esse drama (quer dizer, qualquer um que ande na rua, não num carro blindado com ar condicionado e janelas travadas –- dessa forma as chances de ser assaltado também diminuem consideravelmente). Mas se sou assassinada por um ex-marido ciumento que não aceitou o fim do relacionamento, a gente tem um nome pra isso: é feminicídio. Doze mulheres são mortas por dia no Brasil, quase sempre por companheiros ou ex-companheiros. As causas desses crimes são completamente diferentes das causas de outros homicídios. E o mesmo ocorre com assassinatos cometidos contra gays, lésbicas, e travestis. Eu me sinto burra tendo que explicar algo tão óbvio pra qualquer pessoa com QI superior a de um mascu.
Aí Guzzo compara as restrições de doar sangue impostas a homossexuais com restrições a... pessoas doentes. O cara faz uma comparação dessas no século 21, quase quatro décadas depois de associações psiquiátricas decretarem (tardiamente!) que ser gay não é doença. (Já já publico um guest post de um leitor gay que não pôde doar sangue, simplesmente por ser gay).
Na parte mais involuntariamente divertida do artigo, o autor diz que casamento tem que ser entre homem e mulher, não entre homem e cabra. Putz, semana passada mesmo eu comentei que os argumentos usados contra casamento gay hoje em dia são os mesmos usados contra casamento interracial até 1965: que, se casamento entre pessoas de raças diferentes (opostas?) fosse liberado, as pessoas se casariam com bichos, com parentes, com a Estátua da Liberdade (juro que já ouvi esse argumento). Acho que teve gente que leu meu post e pensou: “Nossa, como ela exagera! É claro que nos dias atuais ninguém mais fala essas besteiras em público!” Obrigada por me dar um exemplo tão atual, Guzzo.
Sem falar que o argumento de que um casamento, para ser legítimo, para formar uma família, precisa ter filhos -– isso me ofende pessoalmente. Meu casamento hétero não gerou filhos porque eu e meu marido quisemos assim. E não considero meu casamento menos válido que qualquer outro. Somos um casal, mas também somos uma família. Talvez Guzzo não esteja a par das últimas estatísticas -– de que a família “tradicional” (marido, esposa, filhos) deixou de ser maioria no Brasil. E viva a diversidade!
Guzzo considera toda e qualquer reivindicação do movimento LGBT “nociva”, mas o título de “mais nociva de todas essas exigências” ele reserva à criminalização da homofobia (e ele nem deve saber que o PL 122 também criminaliza a misoginia, ou que criminalizar homofobia seja tão possível que juristas já aprovaram a criminalização para o novo Código Penal). Será que, em 1989, quando a lei que criminalizava o racismo foi implantada, Guzzo também foi contra? Claro que sim! Assim como conservadores são contra as cotas raciais (e sociais) hoje, já que eles acham que não existe racismo no Brasil. É sempre o mesmo princípio: se fingirmos que não existe discriminação e/ou violência específica contra grupos que vêm sendo discriminados há séculos, não precisamos fazer absolutamente nada para impedir que ela aconteça. E com um bônus track: ainda podemos chamar de preconceituosos quem luta contra a discriminação e violência. Quantas vezes você já ouviu que “você que é racista, porque você acha que raças e racismo existem!”, ou “o negro é o verdadeiro racista”?
Guzzo termina seu artigo dizendo o que nós feministas ouvimos de gente mal informada ou mal intencionada todos os dias: que já conquistamos tudo que queríamos conquistar, não existe mais preconceito, não há mais por que lutar (e nem foram vocês que foram bem sucedidas nas suas lutas –- foi só o -– gasp! -– “avanço natural das sociedades no caminho da liberdade”; se vocês tivessem ficado em casa, tranquilamente lavando suas panelas de Teflon, teriam conseguido de qualquer jeito o direito a voto, as leis não cumpridas de equiparação salarial, o fim da justificativa de “matar para lavar a honra", e tantos outros avanços que vieram “naturalmente”).
Portanto, segundo Guzzo, como vocês gays já conseguiram tudo que queriam, graças a um sistema tão justo e bonzinho -– e vocês ainda reclamam, seus ingratos com o patriarcado! -–, aceitem que agora vocês serão julgados apenas “por seus méritos individuais”, que é o que realmente importa. Logo, já que alguns de vocês conseguem passar no vestibular e se tornar presidentes de uma empresa (escamoteando o fato de você ser gay, e tudo bem, porque como “suas opções em matéria de sexo” não são importantes, você faz muito bem em escondê-las), revoga-se a homofobia. E, mesmo que vocês quisessem prosseguir nesse combate inglório, vocês não têm nem movimentos pra isso mesmo!
Ah, e a pá de cal pra mostrar que nada se salva do artigo: Guzzo diz que o Projeto Apollo “foi feito pra levar o homem à Lua; acabou levando à descoberta da frigideira Tefal”. As pessoas acreditam em cada coisa repetida à exaustão, né? A frigideira revestida com Teflon foi uma invenção francesa de 1954. Nada a ver com o Projeto Apollo.
Talvez artigos tão rasos como o do Guzzo devam ser ignorados. Talvez a melhor forma de protesto seja trocar o avatar para fotos de cabras, como tantas pessoas bem humoradas fizeram. Mas eu continuo ficando cabreira demais com tamanha ignorância. Ou má fé. Ainda não decidi.
 
 
 
 


Disponivel em  Escreva, Lola, Escreva
 
 
 

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