

É
típico dos conservadores centrar-se apenas no indivíduo. Assim, não
existe contexto, não existe condição social, não existe história, nada.
Fracassos e sucessos podem ser creditados a indivíduos, naquela
ideologia que todos estamos em condições iguais. Para Guzzo, não há
comunidade ou movimento gay, pois o que temos são indivíduos. Se ele não
acredita na existência do movimento gay, tampouco deve acreditar que o
movimento feminista exista.

Mais
adiante Guzzo confunde “não gostar” com discriminar, desrespeitar,
maltratar. Aí já é má fé mesmo, não é possível. Desde quando gays, ou
mulheres, ou negros, ou trans, lutam para “serem gostados”? Se uma
pessoa tiver pensamentos preconceituosos, mas sem traduzi-los em
palavras ou ações, não saberemos que a pessoa é preconceituosa. Porque
alguém é homofóbico, ou machista, ou racista, ou transfóbico, pelo que
fala e pelo que faz, não pelo que pensa. Trocando em miúdos que o autor
entenda: uma coisa é não gostar de espinafre, não ter relacionamento com
espinafre, e, se alguém te oferecer espinafre, dizer educadamente,
“Não, obrigado”. Outra coisa é dizer que espinafres são inferiores a
brócolis, fazer leis que se aplicam a todas as verduras, menos aos
espinafres, sair por aí cortando espinafres, tratar espinafres com
insultos espinafróbicos, ensinando as criancinhas a atacar qualquer
espinafre que aparecer na merenda escolar.
É
inacreditável que um sujeito com uma coluna numa revista argumente nesse
nível, dizendo que homofobia não existe porque, na realidade, matam-se
muito mais héteros do que gays. É o mesmo que dizer que misoginia não
existe, porque muito mais homens morrem por causas violentas que
mulheres. Filho, héteros não são mortos por serem héteros. Homens não
são mortos por serem homens, ou por serem vistos como propriedade de
outros homens. Não são crimes de ódio.
Se sou assaltada na rua, isso é violência urbana, não machismo, e
qualquer um está sujeito a esse drama (quer dizer, qualquer um que ande
na rua, não num carro blindado com ar condicionado e janelas travadas –-
dessa forma as chances de ser assaltado também diminuem
consideravelmente). Mas se sou assassinada por um ex-marido ciumento que
não aceitou o fim do relacionamento, a gente tem um nome pra isso: é feminicídio. Doze mulheres são mortas por dia no Brasil, quase sempre
por companheiros ou ex-companheiros. As causas desses crimes são
completamente diferentes das causas de outros homicídios. E o mesmo
ocorre com assassinatos cometidos contra gays, lésbicas, e travestis. Eu
me sinto burra tendo que explicar algo tão óbvio pra qualquer pessoa
com QI superior a de um mascu.
Aí
Guzzo compara as restrições de doar sangue impostas a homossexuais com
restrições a... pessoas doentes. O cara faz uma comparação dessas no
século 21, quase quatro décadas depois de associações psiquiátricas
decretarem (tardiamente!) que ser gay não é doença. (Já já publico um
guest post de um leitor gay que não pôde doar sangue, simplesmente por
ser gay).

Sem
falar que o argumento de que um casamento, para ser legítimo, para
formar uma família, precisa ter filhos -– isso me ofende pessoalmente.
Meu casamento hétero não gerou filhos porque eu e meu marido quisemos
assim. E não considero meu casamento menos válido que qualquer outro.
Somos um casal, mas também somos uma família. Talvez Guzzo não esteja a
par das últimas estatísticas -– de que a família “tradicional” (marido,
esposa, filhos) deixou de ser maioria no Brasil. E viva a diversidade!
Guzzo
considera toda e qualquer reivindicação do movimento LGBT “nociva”, mas o
título de “mais nociva de todas essas exigências” ele reserva à
criminalização da homofobia (e ele nem deve saber que o PL 122 também
criminaliza a misoginia, ou que criminalizar homofobia seja tão possível
que juristas já aprovaram
a criminalização para o novo Código Penal). Será que, em 1989, quando a
lei que criminalizava o racismo foi implantada, Guzzo também foi
contra? Claro que sim! Assim como conservadores são contra as cotas
raciais (e sociais) hoje, já que eles acham que não existe racismo no
Brasil. É sempre o mesmo princípio: se fingirmos que não existe
discriminação e/ou violência específica contra grupos que vêm sendo
discriminados há séculos, não precisamos fazer absolutamente nada para
impedir que ela aconteça. E com um bônus track: ainda podemos chamar de
preconceituosos quem luta contra a discriminação e violência. Quantas
vezes você já ouviu que “você que é racista, porque você acha que raças e
racismo existem!”, ou “o negro é o verdadeiro racista”?
Guzzo
termina seu artigo dizendo o que nós feministas ouvimos de gente mal
informada ou mal intencionada todos os dias: que já conquistamos tudo
que queríamos conquistar, não existe mais preconceito, não há mais por
que lutar (e nem foram vocês que foram bem sucedidas nas suas lutas –-
foi só o -– gasp! -– “avanço natural das sociedades no caminho da
liberdade”; se vocês tivessem ficado em casa, tranquilamente lavando
suas panelas de Teflon, teriam conseguido de qualquer jeito o direito a
voto, as leis não cumpridas de equiparação salarial, o fim da
justificativa de “matar para lavar a honra", e tantos outros avanços que vieram “naturalmente”).

Ah, e a pá de cal pra mostrar que nada se salva
do artigo: Guzzo diz que o Projeto Apollo “foi feito pra levar o homem à
Lua; acabou levando à descoberta da frigideira Tefal”. As pessoas
acreditam em cada coisa repetida à exaustão, né? A frigideira revestida
com Teflon foi uma invenção francesa de 1954. Nada a ver com o Projeto
Apollo.
Talvez
artigos tão rasos como o do Guzzo devam ser ignorados. Talvez a melhor
forma de protesto seja trocar o avatar para fotos de cabras, como tantas
pessoas bem humoradas fizeram. Mas eu continuo ficando cabreira demais
com tamanha ignorância. Ou má fé. Ainda não decidi.
Disponivel em Escreva, Lola, Escreva
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