, ,

Mulheres invisíveis

Ela andava pela rua junto com algumas amigas, quando de repente começam a ouvir vozes, proferindo ofensas raciais e sexuais. Era um grupo de homens e mulheres brancos, héteros e cissexuais, um dos quais é defensor da supremacia branca, a ponto de portar em seu corpo uma tatuagem da suástica nazista.
Palavras de baixo calão. Ouvir xingamentos é algo dolorido, e ela passava por aquilo todos os dias. Não suportou ouvir tantos despautérios. Tinha que reagir. Confrontou o grupo que agredia verbalmente ela e suas amigas, dizendo que não toleraria preconceito. A agressão verbal se tornou agressão física, e uma das mulheres a agrediu com um copo de vidro, ferindo-a no rosto. A vítima tentou escapar, e já havia chegado à esquina quando um dos agressores – Dean Schmitz, o nazista, que já tinha histórico criminal de violência – tentou impedi-la de escapar puxando-a pelo braço na direção dele. Ao fazer isso, a tesoura que a vítima trazia para se defender – a realidade da sua vida a motivou a tomar precauções para se proteger – entrou em seu peito, e ele morreu. Quando a polícia apareceu, a vítima, que estava num ato de legítima defesa, virou a ré, e acabou sendo a única pessoa presa. Foi processada e sua liberdade lhe foi tirada.
Apesar das evidências de autodefesa que foram levantadas, e de que as agressões verbais e físicas partiram do grupo de Schmitz, a corte se recusou a levá-las em consideração. A voz da vítima foi abafada. Foi enviada para uma prisão masculina, e até os remédios receitados para um tratamento de saúde lhe foram retirados. Seus direitos foram totalmente pisoteados.
Lendo esta história logo imaginamos um roteiro de um filme de suspense, ou até mesmo um drama ocorrido no século 19. Não, essa história não é ficcional, nem muito menos aconteceu num país que não respeita a liberdade dos seus cidadãos. Isso aconteceu nos Estados Unidos da América. Quando? Não, não foi no século 19, foi este ano, em pleno século 21. Achou absurdo? Acha que as autoridades americanas enlouqueceram? Como uma mulher pode ser vítima de agressões verbais racistas e sexistas, seguidas de agressão física, e ser considerada culpada por matar em auto defesa? E que idéia é essa de enviar uma mulher para uma prisão masculina? Será que não passou pela cabeça das autoridades que ela corre risco de vida em uma prisão masculina?
Toda essa história ocorreu com uma mulher chamada CeCe McDonald. CeCe, na nossa sociedade, não é vista como uma mulher. E porque não é vista? Simples: CeCe nasceu com um pênis, e na nossa sociedade pessoas que nascem com pênis são automaticamente classificadas como homens. Os genitais são considerados determinantes do gênero da pessoa. Ou seja, CeCe é uma mulher transexual. Isso por si só já bastaria para expô-la a todo tipo de preconceito de gênero, e transfobia. Não apenas isso, CeCe é uma mulher transexual e negra, o que também a expõe a racismo.
Será que CeCe, por ter nascido com um pênis, não pode ser uma mulher? Quem dita as regras? Quem disse que pessoas com vaginas são mulheres e pessoas com pênis são homens? Por que são outras pessoas que escolhem por nós a que gênero pertencemos, e não nós mesmos?
CeCe MacDonald. Clique na imagem para ler uma entrevista em inglês do site Pretty Queer com CeCe.
Ainda: mulheres com pênis não podem ter sua pauta de obtenção de diretos incluídos na luta feminista? Quem define isto?
Mulheres com pênis na nossa sociedade são tratadas como doentes mentais. Doentes porque ao nascer não aceitaram o rótulo de gênero que lhes foi imposto. Quem determina que pessoas que não se identificaram com o rótulo de gênero que receberam ao nascer são doentes mentais? As pessoas que aceitaram o rótulo de gênero que receberam no nascimento? Por que essas pessoas deveriam ter o poder de fazer essa definição, e de interferir na vida das pessoas transexuais desta forma? Porque essas pessoas têm o poder de classificar mulheres com pênis como pessoas anormais, e de negar a elas o reconhecimento de sua identidade de gênero?
E você, que é feminista? Acha que estas mulheres são anormais? Acha que estas mulheres devem ter os mesmos direitos que você tem? Acha que você, uma mulher que nasceu com vagina, é mais mulher que uma mulher com pênis? Acha que mulheres com pênis que sofrem injustiças devem ter apoio de ativistas que lutem por seus direitos? Se sim, o que você está fazendo?
CeCe McDonald é uma mulher, negra, e transexual, que desde sempre tem sofrido preconceitos raciais, como tantas outras pessoas negras, e desde sempre tem sofrido preconceitos de gênero, como tantas outras pessoas transexuais. Ao sofrer agressões verbais e físicas e reagir em auto defesa, viu o Estado, que deveria estar a favor dela enquanto cidadã, corroborar os preconceitos sociais, raciais e sexuais ao condená-la – por ter sobrevivido – a quatro anos de assédio sexual numa prisão masculina, não só por parte de presidiários, como também de funcionários, pois um Estado que pune uma vítima para inocentar o homem branco, hétero e cissexual de seu racismo e preconceito, certamente vai fechar os olhos para abusos cometidos pelos funcionários dos presídios.
Você, mulher feminista, que nasceu com uma vagina, acha que essa história não tem nada a ver com você? Que as demandas das mulheres transexuais não podem fazer parte das pautas do seu feminismo? Que as mulheres transexuais não merecem que você lute por elas? Até quando vai fechar os olhos para as mulheres cujo corpo não é o mesmo que o seu?
Nota: No site http://supportcece.wordpress.com, é possível acompanhar notícias sobre CeCe e o blog pessoal dela, e também obter informações sobre como ajudar financeiramente, enviar cartas, mensagens de apoio, livros e revistas para ela.  Leia também o post sobre o  caso de CeCe no site http://transfeminismo.com/, que possui  mais referências em idioma estrangeiro sobre o tema.

Texto de Leda Ferreira , disponivel em Blogueiras Feministas

0 comentário(s):

Postar um comentário

Deixe sua sugestão, crítica ou saudação juntamente com seu contato.

 

© 2009-2012 movimento contestação