Impunidade encoraja a tortura, diz representante da ONU

Representante do Brasil no Subcomitê para Prevenção da Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), a advogada Margarida Pressburguer afirma que o Brasil tem "cultura da tortura" | Foto: Rafael Wallace/Alerj
Vivian Virissimo
A impunidade vem encorajando agentes públicos a praticarem tortura em locais de privação de liberdade. Este é o diagnóstico da representante do Brasil no Subcomitê para Prevenção da Tortura da Organização das Nações Unidas (ONU), a advogada Margarida Pressburguer. “Tortura-se à vontade e não acontece nada, a tortura é livre”, afirma.
Ativista de direitos humanos há 40 anos, Margarida já foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da sessão carioca da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RJ) e agora centra seus esforços na atuação no órgão internacional. Esta é a primeira vez que o Brasil participa do subcomitê, formado por 25 pessoas de diferentes nacionalidades que monitoram casos de tortura que ocorrem no mundo. “Tortura não é uma qualidade brasileira. Tortura-se em Guantánamo, no Oriente Médio”, destaca.
Além da impunidade, Margarida aponta que no Brasil está instaurada uma “cultura da tortura”. “Eu digo isto baseada na história. A primeira coisa que se fez foi massacrar os índios, os detentores da terra. Depois foram várias revoltas que resultaram na idealização de heróis que na verdade eram vilões. Nos anos de chumbo da ditadura militar, a tortura foi fartamente espalhada sob a égide da proteção”, diz.
“É prevista punição, mas não conheço nenhum caso de alguém que tenha sido condenado por isso no Brasil” | Foto: Arquivo pessoal
“Não conheço quem tenha sido condenado por tortura”
No seu entendimento, a inexistência de formas de punição aos agentes públicos torturadores torna-se um incentivo. “É prevista punição, mas não conheço nenhum caso de alguém que tenha sido condenado por isso no Brasil”. Agentes públicos suspeitos de tortura são, no máximo, afastados de suas funções para desempenharem trabalhos burocráticos e, em casos mais graves, a pessoa é compulsoriamente aposentada. “Mas seguem recebendo dinheiro do Estado, garantindo pensões para suas esposas e filhas”, critica.
Nas atribuições de seu cargo, Margarida realiza missões internacionais nos países signatários do Protocolo Facultativo de Combate à Tortura e também auxilia na organização de comitês estaduais para prevenção da tortura. Recentemente, integrantes do Subcomitê vistoriaram locais com privação de liberdade no Brasil como presídios, abrigos, asilos e manicômios. “Como brasileira fiquei impedida de participar da missão que ocorreu e nem posso relatar o que os representantes viram porque estas informações têm caráter confidencial”, explicou Margarida.
Os observadores internacionais fizeram uma reunião com a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann e a ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, na qual, em caráter confidencial, fizeram um resumo verbal do que viram e sentiram sobre tortura institucionalizada no Brasil. Margarida ressaltou que os casos brasileiros serão analisados em uma conferência em novembro em Bruxelas, quando será redigido um relatório, também confidencial, que será encaminhado ao governo brasileiro. “Se o governo entender que uma parte deve ser divulgada, o material será publicizado. Se o país pedir sigilo, o relatório será mantido sigiloso”, afirma. Mesmo assim, Margarida lembra uma declaração da ministra Maria do Rosário, que demonstrou disposição em divulgar e discutir o teor do relatório.
“Eu tenho esse direito de saber quem torturou meu irmão. E se estiver vivo quero saber quem é essa pessoa" | Foto: Arquivo pessoal
Comitê Nacional de Prevenção à Tortura aguarda votação no Congresso
O Brasil assinou o protocolo em 2002 e o ratificou em 2007. Segundo Margarida, a presidenta Dilma Rousseff encaminhou no dia 30 de setembro um projeto que será analisado pelo Congresso para criação do Comitê Nacional de Prevenção a Tortura (CPT). Uma vez instaurado, o comitê receberá as queixas dos conselhos estaduais e poderá pedir o afastamento de agentes públicos envolvidos em casos de tortura. Além disso, serão elaborados relatórios que detalham a situação brasileira e que serão posteriormente encaminhados para o Subcomitê da ONU.
Ela revela que até o momento somente o Rio de Janeiro conta com um comitê organizado no Brasil e que Minas Gerais, Alagoas e Bahia já estão se articulando para aprovação nas assembléias legislativas. Integram os comitês tanto representantes dos órgãos governamentais quanto da sociedade civil, com a função de fiscalizar locais com privação de liberdade. “O comitê nacional poderá pedir o afastamento imediato dos agentes torturadores. Estes agentes responderão processos e poderão ser punidos, o que até hoje não acontece”, explicou Margarida.
Lei da Anistia e Comissão da Verdade
Para Margarida, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a Lei da Anistia inocenta os casos de tortura. “Impede que os torturadores sejam punidos em troca de uma bilateridade. Mas há uma distinção muito grande, o torturado pagou uma pena sem julgamento. Eles foram mortos, jogados no mar, sem direito de defesa. O que se pretende é que os torturadores respondam por estes crimes”, disse.
Margarida avalia que a Comissão da Verdade poderá transformar a percepção dos brasileiros a respeito da tortura. “A comissão vai trazer à tona aquilo que foi escondido. Crianças brasileiras vão parar de ser induzidas a erro com livros de história que dizem que bárbaros torturadores foram heróis, como Padre José de Anchieta que escravizou e matou milhares de indígenas”, diz Margarida.
Mesmo não prevendo a punição aos torturadores, Margarida percebe avanços na formação da Comissão da Verdade. “Um filho saber que seu pai foi um cruel torturado já é uma forma de punição, já é um começo, mas não é o ideal. Sabemos de alguns torturadores como Ustra Brilhante, Curió e Lucena, mas quantos e quantos mais tivemos?”, questiona, lembrando que seu irmão foi um torturado político. “Eu tenho esse direito de saber quem torturou meu irmão. E se estiver vivo quero saber quem é essa pessoa.”

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