Os indignados do Sul



3 de setembro de 2011 às 9:15h

Embora a economia cresça, a juventude põe em questão o neoliberalismo sem mobilidade social legado por Pinochet. Foto: Martin Bernett/AFP
Os indignados do Chile, segundo o falido pensamento único, não deviam existir. Pois o país- não era a vitrine do neoliberalismo, um sucesso sob todos os pontos de vista? O crescimento econômico não vai mal: ainda se aposta oficialmente em mais de 6%, quando a média esperada para a América Latina, segundo a Cepal, é de 4,4%, e o Brasil projeta 3,7%.
Mas o Peru tem crescido ainda mais – deve superar os 7% em 2011 – em meio a protestos sociais e seus últimos governos têm terminado com baixíssima popularidade. No Chile, como no Peru, uma parte excessiva do crescimento beneficia apenas as empresas estrangeiras e a elite, enquanto muitos veem sua fatia diminuir em termos relativos ou estagnar em termos absolutos, sem perspectiva de melhora. Ao contrário do Brasil, que, apesar do desempenho mediano do PIB, proporcionou forte crescimento às regiões e camadas mais pobres, resultando em um governo popular e na queda do índice de desigualdade de Gini de 0,59, em 2001, para 0,53, em 2010, enquanto o do Chile estagnou em perto de 0,55, desde os anos 1990.
O estopim foi a educação. A legitimidade de uma sociedade capitalista moderna depende da crença na mobilidade social vinculada à iniciativa e ao mérito, que por sua vez exige que se acredite que a educação pública pode proporcionar essa oportunidade a todos que a mereçam.
Mas a transformação do Chile em campo de provas do neoliberalismo pelo falecido ditador Augusto Pinochet e seus assessores da Escola de Chicago desmantelou boa parte da educação gratuita para subsidiar o ensino privado pago. O país gasta 3,7% do PIB com educação (ante 6,5% da Argentina e 5,4% do Brasil em 2010, este devendo chegar a 7% em 2011), enquanto os gastos privados são de 2,7% (ante 1,3% no Brasil).
As subvenções, proporcionais ao número de alunos presentes nas aulas, representam 60% do gasto do Ministério da Educação. Segundo Milton Friedman, o sistema que idealizou promoveria a concorrência e proporcionaria livre escolha entre escolas públicas e privadas. Na prática, reproduz e amplia as desigualdades.
As melhores escolas privadas subvencionadas burlam as exigências oficiais e vetam alunos de origem humilde para garantir seu desempenho e perfil social, mesmo que suas famílias queiram pagar as taxas adicionais, até -quatro -vezes superiores ao valor subvencionado. Continuam tão elitistas quanto antes – só que as elites agora pagam menos do que poderiam, graças à subvenção que sai dos bolsos de todos os chilenos, inclusive os mais pobres.
Ao mesmo tempo, nas escolas públicas, que deixam de ser gratuitas a partir do ensino médio, a soma das mensalidades pagas pelos pais com a subvenção por presença é insuficiente, inclusive porque esses alunos faltam mais. É pior nos bairros e municípios pobres, se as prefeituras não dão subsídios além dos nacionais e não há empresas privadas para patrocinar o ensino técnico. Material escolar e uniformes (obrigatórios em todas as escolas) também são pagos. As famílias pobres demais para pagar são em tese isentas de contribuição, mas são pressionadas, humilhadas e na prática excluídas.
Para os estudantes liderados por Vallejo (acima), a educação os restringe, em vez de abrir de abrir perspectivas. Foto: Martin Bernett/AFP
Não há ensino superior gratuito e os alunos sem recursos têm de recorrer ao crédito educativo e arcar com dívidas da ordem de 30 mil dólares a juros de 5% ou mais, que levarão até 20 anos para pagar. Naturalmente, os desfavorecidos nos ensinos fundamental e médio têm dificuldades em conseguir um ensino superior de boa qualidade – ou de qualquer qualidade –, terão mais dificuldades para pagar e, mesmo que tenham boas notas, serão preteridos no mercado de trabalho em favor daqueles que cursaram “boas” escolas. O tratamento pretensamente igual dos desiguais agrava a desigualdade.
O primeiro grande protesto estudantil, a Revolta dos Pinguins (alusão ao uniforme característico dos estudantes chilenos) aconteceu em 2006, mas este ano alcançaram proporções muito maiores. Ao descontentamento da juventude politizada com o conservador Sebastián Piñera somaram-se o mau desempenho do governo ao socorrer os desabrigados pelo terremoto de fevereiro de 2010 e sua arrogância repressiva no trato com manifestantes, inclusive indígenas que reivindicaram a devolução de suas terras e ambientalistas que protestam contra novas represas na Patagônia.
“Nada é de graça nesta vida”, respondeu às exigências de ensino gratuito quando as mobilizações cresceram, apesar da promessa de bolsas de estudo para os 40% de estudantes mais pobres – e elas cresceram mais ainda. Desde junho, grande parte das escolas está parada, muitas delas ocupadas. Manifestações mobilizam centenas de milhares de estudantes, pais e professores a cada vez. Pelo menos 30 estudantes estão em greve de fome há seis semanas. A CUT chilena somou seu apoio e suas reivindicações, paralisando o serviço público nos dias 24 e 25 de agosto. Indígenas e ambientalistas também trazem as suas e as propostas convergem na reivindicação de uma ampla reforma constitucional para varrer o entulho pinochetista e concluir a transição iniciada em 1988.
A direita, que esperou 20 anos pela oportunidade de voltar a radicalizar o modelo social e econômico amenizado pela Concertación, não se conforma em ver a oportunidade escapar em menos de dois anos de governo. Se mata a la perra y se acaba la leva, tuitou a secretária-executiva do Conselho do Livro, no Ministério da Cultura, referindo-se à líder estudantil Camila Vallejo, porta-voz mais visível dos protestos e repetindo uma frase de Pinochet usada em relação a Salvador Allende. Outros funcionários se encarregaram de divulgar o endereço e telefone da presidenta do diretório estudantil da Universidade do Chile e fazer ameaças mais explícitas.
Vallejo recebeu oficialmente proteção da polícia. Que tentou esconder que baleou e matou um adolescente de 16 anos que acompanhou o irmão cadeirante aos protestos do dia 25. Depois que o comando alegou que o tiro partira dos manifestantes e se recusou a investigar, um carabineiro denunciou um colega, resultando na prisão deste e no afastamento de seus superiores. Como todo o sistema chileno, também a polícia está em questão. •

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