A ETERNA PARADA DOS SEM NOÇÃO

Precisamos de um dia de protesto para poder beijar em público!



Hoje é Dia Mundial do Orgulho LGBTTT. Parabéns, pessoal! (o título do post não tem a ver com a Parada Gay!). Tem que se orgulhar mesmo de ser o que é, apesar de o que somos (lésbicas, gays, transexuais, mulheres, negros, gordos, ateus, pessoas com necessidades especiais etc)  ser constantemente massacrado pela sociedade através de violência, discursos de ódio, religiões, piadinhas, falta de representatividade, preconceitos, insultos, e até leis contra nós. Apesar do dia 28 de junho ser dedicado ao orgulho LGBT, faço questão de escrever no plural. Todas as minorias são discriminadas. Ao invés de competirmos numa espécie de Olimpíada da Opressão para ver quem sofre mais preconceito, temos mais é que nos unir. E mais: precisamos ter orgulho de estar na companhia de outras minorias igualmente aguerridas. Tod@s nós lutamos por um mundo melhor, livre de preconceitos. Escrevo isso porque a quarta da semana passada foi uma abominação, um verdadeiro f reak show. Nesse dia um deputado paulista sugeriu que fosse fixada uma data pra comemorar o orgulho de ser heterossexual. E imediatamente as absurdas palavras Orgulho Hétero alcançaram o primeiro lugar dos Trending Topics do Twitter. Eu escrevi dois tweetzinhos contra e recebi uma avalanche de críticas (coloco aqui alguns dos melhores momentos. Não é importante quem falou, mas o que foi dito). Em seguida veio a Consciência Branca (alguns dizem que esse foi um TT pra zoar do Orgulho Hétero e do projeto do deputado, mas, como sempre no Twitter, havia gente levando o troço a sério). A primeira pergunta que vem desse pessoal que deseja se orgulhar de ser o padrão, a Verdade e a Luz, costuma ser: puxa, mas se um negro pode usar uma camiseta escrito 100% negro, por que não posso usar um a escrito 100% branco?

É o seguinte: poder até pode. Ninguém vai te fazer tirar a camisa, nem você irá preso por isso. Mas muita gente irá te considerar um completo babaca por vestir tal camisa. Um ignorante mesmo. Sabe por quê? Porque você tá deixando claro que não sabe o que é contexto. Porque, através de uma lousy t-shirt, você está dizendo que não sabe, ou não acredita (o que é pior?), que negros sofreram (sofrem ainda) séculos de exploração e humilhação. Porque você está afirmando que desconhece que nossa sociedade, t odos os dias, associa negritude a coisas feias e sujas, e brancura ao que é limpo, puro e belo. Porque, pra finalizar, você está fingindo que não sabe (só pode estar fingindo!) que existem montes de movimentos fascistas como a Ku Klux Klan e os skinheads que fazem da supremacia branca a sua razão de viver. Eles, sim, têm motivos pra ter orgulho de ser branco — é porque odeiam os negros. Qual é o seu motivo? Se você não odeia os negros, por que quer esfregar na cara de todos que você não tem nem uma gotinha de sangue negro no seu organismo? O que você quer provar, ainda mais num país miscigenado como o nosso?

Só dizer “tenho orgulho de ser hétero” não significa necessariamente ser homofóbico. O problema é que é um a declaração dessas não vem à toa. De onde isso veio tem muito mais. Pode apostar que na frase seguinte a pessoa já vai dizer alguma bobagem como, sei lá, “Não tenho nada contra os gays, mas quero mais é que eles morram”. Nunca sei se essa pessoa está provando ser uma completa sem noção (ao não perceber que se contradisse na mesma sentença), ou se é brincalhona, e só não tem noção que está insultando seu interlocutor. Geralmente a pessoa que diz isso ou assume que é homofóbica (exemplo: “Se bater no meu filho pra evitar que ele vire viado é homofobia, então eu sou homofóbico sim!”, seguido de uma batida no peito), ou nega: “Claro que não sou homofóbico, tenho até amigo gay!” (ou , pros mais sem noção ainda: “Claro que não sou homofóbico, até assisto The L Word!”). Orgulho é o oposto de vergonha. Quando é que você sentiu vergonha de ser branco? É verdade que existe algo chamado white guilt, culpa branca, mas isso é sentir vergonha do que os brancos fizeram (é, quase sempre isso é visto como passado, fato encerrado) aos não-brancos. Mas esse “sentir vergonha” é no coletivo, é algo distante — por exemplo, ter vergonha dos antepassados que tinham escravos. No plano individual, a pessoa continua sendo contra as cotas pra negros. Ou seja, vergonha por ser branco pode acontecer, mas aí é vergonha pelo que outros brancos fizeram. Quando você sentiu vergonha de ser homem? (novamente, se acontecer, é pelo que outros homens fazem). Mas a sociedade não vem pra você e te diz “Eca! Que horror que é ser branco e homem!”. Não, isso é celebrado. Pense no que a gente vê na mídia (tirando os comerciais da Bombril e outros que dizem que homens são totais incapazes. Mas até isso é bom e estratégico, porque ninguém vai esperar que um incapaz faça alguma coisa, como cozinhar ou limpar a casa. Melhor deixar com quem sabe. Opa, esse alguém é a mulher?! Que incrível coincidência!). Pense na linguagem que usamos. Pense nos termos usados para condenar a sexualidade feminina (vadia, piranha, galinha etc) e para celebrar a sua (garanhão). Pense em como “aquilo roxo” e “colhões”, que só existem na anatomia masculina, são sinônimos de coragem, e em como macheza está associada à valentia, determinação, bravura, e em como “mulherzinha” é o oposto. Ser homem e branco é o padrão dominante, é a cor e o sexo de quem manda, de quem tem poder, de quem tem dinheiro, de quem faz as leis, e para quem as leis são feitas. Mas de nada adianta estar dentro do padrão desejável — homem e branco — se você puser tudo a perder sendo gay. Porque aí você será expulso do clubinho de homens brancos. É como se você estivesse cuspindo no prato que comeu, rasgando sua carta de privilégios. Tudo bem se você esconder que é gay. Se a gente olhar pra você sem desconfiar que você gosta de pênis alheio (porque a gente só gosta do nosso próprio), se você se enfiar num armário e não sair dele jamais, se você mantiver um namoro ou um casamento de conveniência (com uma mulher, lógico!), se você não tiver o menor trejeito que te denuncie, se você rir das nossas piadas que dizem — brincando, claro, tenha senso de humor!! — que viado é ridículo e inútil e nojento, bom, se você seguir todas essas regras, a gente te atura. Somos tolerantes e bonzinhos com os gays: é só não ser gay, entendeu?! E é por isso que ser gay é tão ofensivo pro padrão dominante. Porque, pô, um negro não pode escolher ser negro, uma mulher não pode escolher ser mulher (e tudo bem uma mulher ser mulher, desde que saiba seu lugar e cumpra suas funções), mas um gay definitivamente pode escolher ser hétero! É só querer! É só deixar de ser fresco! Óbvio que um gay só quer ser gay porque está na moda, porque, né, ser gay traz um mundo de vantagens! Pense nos privilégios que um hétero tem. Quando você sentiu vergonha de ser hétero? (nesse caso, em geral, a gente nem costuma se envergonhar dos outros héteros!). Quando você foi discriminado por ser hétero? A única resposta que um hétero tem na ponta da língua pra essa pergunta é “Quando fui a uma boate gay”. Primeiro que não acredito muito nisso (héteros são bem tratados em boates gays). Depois que, olha só, você tev e que ir a um lugar específico para ser discriminado. Prum gay, lésbica, trans ser discriminado, tudo que el@ tem que fazer é sair à rua. Aliás, serve ser discriminado dentro de casa também. Não tem que ir a lugar nenhum pra sofrer discriminação, basta existir.

Portanto, ter orgulho de ser hétero é querer celebrar a sorte que você tem simplesmente por ter nascido hétero. É ostentar riqueza, e ostentação de riqueza não pega bem. Sabe quando um milionário fútil gasta milhares de reais festejando o aniversário do seu bichinho de estimação? Sabe quando um cara tem a petulância de reclamar das suas férias num resort de esqui porque lá não estava frio o suficiente? Sabe quando o filhinho de papai critica a empregada por mexer nas suas coisas, sem imaginar que ser empregada não é um emprego dos sonhos, e que é um privilégio ter alguém pra limpar a sua sujeira? Então. Você, hétero, ao querer celebrar publicamente sua heterossexualidade, é um filhinho de papai. Porque ninguém está mexendo nas suas coisas ou ameaçando tirá-l as de você. Porque sua orientação sexual não está correndo riscos. Porque você tem e vai continuar tendo todo o direito de andar de mãos dadas, beijar, casar com alguém do sexo oposto, adotar uma criança, e ninguém vai te olhar feio. Ninguém vai te expulsar do recinto, ninguém vai te bater ou matar, ninguém vai querer te transformar, ninguém vai dizer que se envergonha de ser seu pai/mãe, ninguém vai pensar que sua orientação sexual é depravada ou relacioná-la à pedofilia, ninguém vai te despedir do emprego po r causa da sua heterossexualidade, ninguém vai dizer que o que você faz é pecado e que você vai arder no inferno por conta disso. Ou seja, você não precisa de uma data específica pra defender sua orientação sexual. Ela não está sob ataque. Todo santo dia você está mostrando seu orgulho hétero. Todo dia é um desfile sem fim pra você. Então, em vez de se orgulhar do seu privilégio, que tal envergonhar-se de viver numa sociedade que insiste em negar direitos a quem não é “normal” como você?

Disponível (com imagens) em http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2011/06/eterna-parada-dos-sem-nocao.html

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