Carnaval, ópio do povo?


Carro alegórico da Mangueira em homenagem a Cartola e Dona Zica
Por Caio Amorim
É comum associarmos a frase atribuída a Marx “A religião é o ópio do povo” a outras formas de “pão e circo”. Como futebol e carnaval, por exemplo. No entanto, tanto o futebol como o carnaval podem ser fontes de mobilização e conscientização popular.
O desfile das escolas de samba (maioria com sede em favelas), juntamente com seu samba-enredo, são por si só uma afirmação do povo favelado, da cultura favelada e negra. Principalmente o samba, que foi tão criminalizado no passado e hoje é aceito, endossado e, muitas vezes, cooptado pelas elites. Isso, de fato, é muito pouco, mas ainda assim é uma mensagem simbólica forte. Termos, por exemplo, a favela representada na comissão de frente da Mangueira deste ano, afirmando a beleza da luta diária das pessoas que lá vivem. Não mascarando que a favela é sim um lugar precarizado, em que muitos lutam para transformar para melhor o lugar onde nasceram e foram criados.
São inúmeros sambas-enredo na história do carnaval carioca com letras politizadas. Alguns exemplos: o enredo da Unidos da Tijuca de 1982 (clique para ouvir), que falou sobre o escritor negro Lima Barreto, sambas da mangueira de 2000 (Dom Obá) e de 1988 (centenário da Lei Áurea) que questionava a abolição da escravatura e permanência da condição de submissão e exploração do negro no Brasil.
Comissão de frente da Mangueira retrata a vida de Nelson Cavaquinho na favela e a luta diária do povo | Foto: Valéria del Cueto
Mas, infelizmente, nos últimos anos, talvez reflexo de uma despolitização geral da população brasileira, tem sido cada vez mais raro haver alguma mensagem política nos sambas e desfiles. Mesmo assim há de se destacar nesse ano, o desfile da Mangueira, para mim, o mais emocionante. Homenageando um de seus integrantes antológicos, Nelson Cavaquinho e com uma paradona de 21 segundos da bateria em que o público e escola cantavam à capela o refrão “Mangueira é nação, é comunidade! Minha festa, teu samba, ninguém vai calar!”, com a exaltação da luta do povo de favela na comissão de frente. A Estação Primeira reverenciou uma figura lendária do samba, que fazia músicas para mudar sua realidade. Músicas que afirmavam seu lugar de origem, como “Folhas Secas”, e mensagens de esperança em um mundo mais justo, como em “Juízo Final”.
Em compensação, o Salgueiro se mostra mais um corroborador da política de extermínio praticada pelos setores responsáveis pela segurança pública no Rio de Janeiro. Filosofia de enfrentamento tão propalada pela mídia grande e aplaudida pela maioria da população fluminense. Os ritmistas da escola saíram fantasiados de soldados do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), lembrando o filme Tropa de Elite, já que o enredo falava sobre a relação do Rio com o Cinema. A rainha de bateria, Viviane Araújo tinha em sua fantasia caveiras lembrando o símbolo do BOPE. Para coroar tamanho mau gosto, ainda foi construída uma réplica do Caveirão, do tamanho de um carrinho de sorvete, para transportar água para os integrantes da bateria.
Nem mesmo os fatos revelados recentemente pela Operação Guilhotina – de que os mesmos policiais que saíram como heróis após matar pobres no Alemão (em 2007 e 2010) e foram presos por desviar dinheiro para tráfico e milícias -, abalaram a fama de bons moços dos “homens de preto”. Castigo divino (que me desculpem os salgueirenses) por homenagear uma filosofia assassina de ‘segurança pública’, a escola alvirrubra estourou por 10 minutos o tempo permitido já perdendo um ponto do total para a apuração e dando adeus a um título, que, provavelmente, disputaria com Mangueira, Unidos da Tijuca, Beija-Flor e Mocidade. Pra piorar, a cantora Fernanda Abreu comentou no final do desfile, na chatíssima transmissão da Globo (que não deixa ninguém ouvir os sambas): “Uma pena o atraso do Salgueiro, até porque achei ótima a ideia do carnavalesco Renato Lage de colocar a bateria vestida de Bope, até pra desmistificar a ideia do policial, que finalmente começa a mudar com a pacificação, com as UPPs…”. Caramba! Será que esse pessoal não ouve/vê/lê as notícias sobre a Operação Guilhotina? Será que a informação (mesmo que manipulada pela mídia oligárquica) de que essa polícia que é chamada de herói é a mesma assassina, corrupta que vende drogas e armas para o tráfico, entra por um ouvido e sai por outro?  O policial da UPP é o mesmo que mata e vê o favelado como inimigo (mesmo tendo nascido na favela ou em locais pobres). Não há uma nova polícia no Rio de Janeiro! É a mesma de sempre sob a farsa de “revolução na segurança pública, numa cidade pacificada”.
Bom, mas voltando ao carnaval, fica aqui a minha torcida pela Mangueira, que teve um samba-enredo e bateria espetacular. Pra mim, a parte mais valorizada da escola de samba (inclusive na apuração) deveria ser a parte musical: samba-enredo, intérpretes, bateria, instrumentos, já que é o que mais emociona e fica na memória do público. Impossível não se arrepiar, por exemplo, com o público e a escola cantando a plenos pulmões com a bateria parada, como vemos no vídeo abaixo:
É fato que o carnaval do Rio de Janeiro vem se tornando um espetáculo para a televisão, se afastando de sua essência de manifestação popular. Os ingressos para o Sambódromo cada vez mais caros, cada vez mais integrantes de fora da comunidade. Um dos antídotos para evitar que essa cultura DA massa se torne uma cultura DE massa (pasteurizada, previamente mastigada, sem a presença do povo como principal ator) seria a volta de sambas que contam a realidade social (não necessariamente o da favela, mas de todo povo oprimido), a história de lutas, a alegria dos homens e mulheres do povo e a volta da valorização do samba-enredo como elemento fundamental de resistência cultural.

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