Um outubro do mundo árabe?

Atílio Borón

O discurso pronunciado por Hosni Mubarak, na última quinta-feira [11], caiu como um balde de água fria sobre os manifestantes reunidos na Praça Tahir, no Cairo.

Espalhara-se a ilusão, boataria, de que o vetusto ditador então iria anunciar sua aposentadoria da vida pública e iria abrir espaço para a formação de uma "comissão de salvação nacional"; essa, responsável por assumir temporariamente os encargos e atribuições do governo, convocar uma assembleia constituinte para estabelecer nova institucionalidade democrática, encaminhar eleições gerais e formar, finalmente, um governo legítimo. Em vez disso, Mubarak ratificou sua continuidade no comando governamental até as eleições previstas para setembro e anunciou a transferência de alguns de seus poderes ao seu vice Omar Suleiman e de outros, sem especificá-los, ao alto comando militar. De fato, o que fez foi dizer ao povo, mobilizado que estava já por 17 dias, que tudo havia sido em vão. Foi a derradeira provocação, que a um argentino não chega sem reavivar a memória do absurdo discurso pronunciado por Fernando de la Rúa na noite de 19 de Dezembro de 2001. Em ambos os casos, os mandatários desesperados tentaram aplacar um incêndio lançando gasolina sobre as chamas. E foi assim. A formidável reação gerada pelo discurso de Mubarak desencadeou a "tempestade perfeita", tão temida e predita por Hillary Clinton, e o tirano egípcio teve de fugir vergonhosamente do Cairo para salvar sua pele... e sua fortuna colossal.

A renúncia de Mubarak significa não somente sua desaparição da cena pública egípcia como também algo muito mais importante: o colapso de um regime que pouco depois da morte de Nasser, em 1970, e em subordinação aos Estados Unidos, converteu-se no maior Quartel de guarda no arco regional protetor de Israel, utilizando a ascendência que mantinha sobre o mundo árabe para convalidar o lento genocídio da nação palestina. Tal como escreveu um dos ideólogos do império no New York Times, Thomas Friedman, "O Egito nunca mais será o que era". Efetivamente, e essa é a dor de cabeça que sofrem os administradores imperiais porque o delicado tabuleiro político do Oriente Médio foi lançado aos ares. Era uma mesa de três pernas: Irã, Egito e Israel. A primeira perna foi quebrada pela revolução islâmica em 1979; com as duas restantes, a instabilidade do arranjo tornou-se crônica. Retirada a perna egípcia, o tabuleiro desta região petrolífera crucial do planeta encontra-se irreparavelmente destroçado. EUA, sustentáculo financeiro e político do regime ditatorial por quarenta anos, teve demonstrada sua impotência quando as massas egípcias se adonaram das ruas e praças e teve que resignar-se ao papel de espectador surpreendido pela crise. Uma lição da qual os povos de todo o mundo deveriam tomar nota.

Agora, o tantas vezes imaginado "efeito dominó" deixou de ser um pesadelo dos imperialistas para converter-se em realidade: sequer havia passado uma hora após a divulgação da renúncia de Mubarak e já as massas ocupavam as ruas das principais cidades do Oriente Médio para celebrar a queda do regime, na Argélia nada menos que multidões a fazê-lo. Os tiranos da Jordânia e do Iêmen já haviam sido obrigados a ceder aos reclames populares, embora tais concessões sejam ainda tímidas, oportunistas e demagógicas; na própria Arábia Saudita – onde os partidos políticos são expressamente proibidos – na sexta-feira, 11/2/2011, anunciou-se em público a formação de um organismo político-partidário sem que, para espanto universal, fosse imediatamente dissolvido ou fossem seus líderes presos pelo regime. O rei Abdullah, grande amigo dos EUA de quem, para deleite do complexo industrial-militar, acaba de adquirir armamentos em um montante de 60 bilhões de dólares, está convenientemente colocando as barbas de molho com receio de ser aparado a seco pelos opositores.

Em 18 heroicas jornadas de luta o povo egípcio foi o grande protagonista de um acontecimento que o velho Hegel não hesitaria em caracterizar como de significação "histórica universal". Foi posto um eixo de rotação na história moderna do mundo árabe. Entretanto, não se conquistou a democracia, cuja obtenção irá requerer ainda enormes esforços: uma presença constante nas ruas, aprimorar as estruturas organizativas e forjar a consciência política; tudo aquilo que impediria que a vitória popular seja escamoteada pelas forças de reação, ainda recolhidas dentre as ruínas do regime, ou pelos titubeios de um setor da oposição que simplesmente aspira a uma liberalização política moderada, preservando o modelo neoliberal causador do holocausto social do Egito contemporâneo. Ganhou-se uma primeira grande batalha, virão muitas outras. Este Fevereiro de 2011 bem poderia resultar na reedição de outro, acontecido em 1917, na Rússia, onde também se ganhou uma crucial batalha da qual decorridos oito meses veio à luz uma revolução que, com seus êxitos e defeitos, mudou o curso da história contemporânea. É muito cedo para formular prognósticos de longo prazo; porém, quem poderia agora atrever-se a descartar a possibilidade de que o mundo árabe tenha também o seu Outubro?

Traduzido por Rui Donato para Diário Liberdade


Fonte: Diário Liberdade -- http://t.co/D64t7Ym

2 comentários:

  1. Gostei da análise.
    Tive conhecimento hoje de que um grupo de cidadãos decidiu através do facebook mobilizar mais pessoas para fazer uma revolta em Lisboa contra a corrupção e as más políticas efectuadas até ao momento, reflectindo o cansaço da sociedade civil perante o estado do país e o caminho e rumo que estamos a levar.
    Pelo que sei, a revolta chama-se Revolta das Vassouras e está nesta página de Facebook:

    http://www.facebook.com/pages/Revolta-das-Vassouras/188309227870720

    Acho que é uma excelente ideia e já marcaram para dia 11 de Março o dia da saída para a rua!
    Porque não nos juntamos? Afinal são pessoas e cidadãos indignados e fartos como nós!

    Abraço.

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  2. Olá companheiro,

    Obrigada por ler e participar em nosso blog!

    Vamos nos informar mais sobre essa mobilização!

    Saudações,

    Gabriela Blanco.

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