Por Marília Gonçalves, Cecília Olliveira e Vitor Castro
Aos 56 anos, Luiz Eduardo Soares já foi subsecretário de segurança pública do Rio de Janeiro no governo de Anthony Garotinho, entre 1999 e 2000, Secretário Nacional de Segurança Pública no primeiro ano do governo Lula e Secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da Violência em Nova Iguaçu, no governo de Lindberg Farias entre 2006 e 2009. Professor universitário de antropologia e ciências políticas, autor de vários livros, Luiz Eduardo é referência nacional na área de segurança pública. Ele afirma, porém, que sacrificou um projeto pessoal ligado ao teatro e à literatura, áreas as quais era ligado na época da ditadura.
Luiz Eduardo Soares, durante a entrevista. Foto: Jorge L. Campos
Luiz Eduardo é o 3º entrevistado da série “Daqui pra frente”, realizada pelo Observatório Notícais & Análises essa semana. Na entrevista, Luiz Eduardo defende a “ocupação” das polícias, espaços históricos de corrupção. “Nunca houve possibilidade de que o tráfico se fixasse sem colaboração tática da polícia militar”.
Leia abaixo a entrevista completa com o autor de Elite da Tropa.
É possível dizer que neste momento há um avanço na política de segurança do Rio de Janeiro, em especial na ocupação no conjunto de favelas do Alemão em novembro?
É claro que há muitos elementos que são permanentes. Primeiro o discurso legalista das autoridades é uma novidade. Parece banal, mas não é. Por exemplo o zelo com que as autoridades reconheceram violações e se dispuseram a evitá-las, combatê-las e preveni-las. Não sei se na prática isso aconteceu, veremos depois nos índices das pesquisas que se farão. Mas após as denúncias de violações o secretário Beltrame disse que formaria uma ouvidoria, que levaria corregedores ao local. Houve um tipo de atenção a este problema que nunca se dera.
Além disso, pouparam-se vidas permitindo a rendição. Pode-se dizer que foi porque a TV estava presente. O fato é que houve muita cautela, muito cuidado, tempo oferecido para que houvesse rendição. Lembremo-nos que estamos imersos numa história marcada pelo fim da rendição como política explícita. Isso que nós chamamos de genocídio, que se traduz nas 7.856 mortes causadas por ações policiais de 2003 a 2009 – mortes que nós sabemos de quem, cuja cor de pele e origem social nós conhecemos – parecia ali não fazer parte daquele universo de interesses. Então se nós temos um histórico de genocídio, se nós temos um histórico de uma das polícias mais brutais, de sucessivas incursões violentas, e se agora nós temos UPP, que é o avesso das incursões violentas, nós temos então um contexto novo na cidade. Há elementos importantes aí.
Para que a UPP possa ter futuro, precisamos olhar para as polícias. Isso exige muita vontade política
O problema é que isso é só parte da realidade. E se nós mascararmos a outra nós não vamos enfrentar. E vamos acabar voltando pra estaca zero de onde saímos. Toda essa cena ufanista se deu celebrando a retomada de um bairro para a vigência do estado democrático de direito. É disto que se trata. Da obrigação mais elementar e trivial. Então nós não podemos esconder as razões pelas quais chegamos a esse ponto. Isso tem sido mascarado pelo maniqueísmo com que tem se tratado o problema: o lado do bem contra o lado do mal. Ora bolas, tráfico de drogas e desvio de armas no Rio de Janeiro só existiu sempre por causa de sua sociedade com a polícia. Nunca houve possibilidade de que o tráfico se fixasse sem colaboração tática da polícia militar. Eu digo isso, sempre bom lembrar, sem generalizar, nós temos milhares de policiais honestos, trabalhadores, que arriscam sua vida por salários indignos. Em homenagem a eles nós temos que salientar esse ponto. Não há essa polaridade ufanista no Rio de Janeiro. As polícias são incubadores de crime. As milícias são um caso exorbitante e dramático disso. Mas há diversas outras formas. Nós temos que justamente reconstruir essa polaridade entre legalidade e ilegalidade. Como chegamos a este Alemão do jeito que estava? Com a cumplicidade do Estado via polícia. É só isso que está faltando. Se nós reconhecermos isso, vamos precisar de uma nova invasão. Exército, Marinha, policiais de bem, vamos nos unir todos para invadir e ocupar as polícias. Esse é o terreno do qual o estado democrático de direito tem de se apossar. Não podemos descartar as polícias.
Em relação à UPP, qual sua opinião?
A UPP é um bom projeto porque descarta as incursões policiais, é um bom projeto porque define a favela como um lugar da cidade. A favela precisa de policiamento como qualquer outro bairro da cidade, e a população adora a polícia quando a polícia lhe trata com respeito. Mas até agora a UPP é um experimento em laboratório. Tem de ser uma política pública. Para sê-lo, precisa de escala e sustentabilidade. Como dar escala e sustentabilidade, na esfera policial, sem repassar esses experimentos para as instituições policiais? Mas como repassar para essas polícias degradadas como estão? Para que a UPP possa ter futuro, precisamos olhar para as polícias. Isso exige muita vontade política.
Antes as milícias eram tratadas como autodefesa comunitária, inclusive por autoridades públicas. Poucos vinham a público dizer que milícia era crime organizado, máfia
Há a possibilidade que se levanta da legalização das drogas leves. É uma possibilidade que ajudaria às UPPs, por exemplo?
Talvez sim. Mas eu sou favorável à legalização das drogas não porque isso reduz a violência ou altera a realidade aqui ou acolá. Eu sou favorável por princípio: o que pode e o que não pode o Estado dizer a cada indivíduo sobre o que decidir na sua vida privada? Isso já levou à proibição do álcool, do sexo anal (mesmo entre esposos), já levou à proibição das coisas mais extraordinárias. Mas, enfim, por princípio, eu acho que o Estado não tem o direito de dizer o que o indivíduo pode ou não consumir em sua vida privada desde que não provoque danos à sociedade.
Agora, uma questão pragmática. Eu acho que a pergunta está mal formulada em geral, no mundo, neste debate. Devemos ou não permitir que indivíduos tenham acesso às drogas hoje consideradas ilícitas? Isso pressupõe que existe alguma maneira de impedir esse acesso. Você não questiona se devemos ou não permitir que aviões caiam. Não depende de nós. No mundo democrático não há como impedir o acesso às drogas. Gastam-se bilhões na guerra contra as drogas e não há controle. O negócio das drogas vai muito bem no mundo todo. A pergunta é: dado que o acesso às drogas é uma realidade, em que contexto normativo, jurídico, seria melhor conviver com essa realidade, que é nociva à saúde? Estamos lidando com o álcool e o cigarro, afinal, sem criminalizar seu usuário. É melhor lidar com essa questão no contexto em que as drogas são problema de polícia e prisão ou de saúde e social? Me parece que a primeira opção está descartada porque gera criminalização da pobreza e todos os problemas que conhecemos. Acho que, de maneira geral, histórica, a legalização só provocaria êxitos.
Se você pudesse fazer um prognóstico da segurança pública para 2011, 2014 e 2016, anos de Copa e Olimpíadas, como seria? Você vislumbra uma melhoria da polícia?
Eu tenho uma aposta, uma convicção pessoal de que os eventos vão acontecer muito bem. Nós somos, afinal, ótimos em eventos. Mas a minha preocupação é com a rotina, com o dia a dia. O que eu posso dizer, não sobre o futuro, mas como uma observação do passado recente é que houve avanço. Termos um secretário como o Beltrame que, apesar de minhas críticas, tenho certeza que é honesto e está empenhado, significa muito, muito mesmo. Não tenho dúvida nenhuma de que ele está lutando contra a banda podre da polícia, contra a corrupção. Nós temos uma mudança com relação ao tratamento dos casos de corrupção policial, na forma extrema da milícia. Antes, as milícias eram tratadas como autodefesa comunitária, inclusive por autoridades públicas. Poucos vinham a público dizer que milícia era crime cruel, era crime organizado, máfia, etc. Agora, na última campanha, mudou o discurso, porque a milícia passou a ser vista como aquilo que efetivamente é. Agora passou a ser feio estar ao lado da milícia. O discurso legalista recente, mais esses indicadores são, evidentemente, positivos e representam um avanço.
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