Repressão criminal às drogas: não podemos fugir do debate

A saída de Pedro Abramovay da Secretaria Nacional Anti-Drogas antes de completado o primeiro mês do novo governo deixa a inquietação quanto ao abandono do debate sobre a adoção de penas alternativas à prisão para pequenos traficantes.
Esse debate é imperioso e urgente. O Brasil já é o segundo maior consumidor de drogas ilícitas do planeta, um dos principais pontos de articulação do comércio global de drogas. E já tem a terceira maior população prisional do mundo.
De um lado, o comércio de drogas é uma atividade econômica ilícita bastante complexa e muito enraizada em todas as camadas sociais. A CPI do Narcotráfico, realizada em 2000 pela Câmara dos Deputados, trouxe evidências de envolvimento de políticos de todas as instâncias, policiais, juízes, instituições prisionais e empresários dos mais diversos ramos da economia legal. Combater essa forma complexa e globalizada de economia ilícita requer estratégias diversificadas e uma grande otimização de recursos para investigar e reprimir essas atividades de modo inteligente e diversificado. A simples possibilidade de aplicação da pena de prisão não tem sido eficaz para debilitar esse crescente mercado ilegal no Brasil. Mudanças são necessárias.
De outro lado, há sérios problemas de gestão da população prisional. Em São Paulo, o período que se seguiu à vigência da Lei de Crimes Hediondos, que tornou impossível a progressão do regime de pena para modalidades dos crimes de tráfico de drogas coincidiu com o fortalecimento e a expansão territorial do PCC dentro e fora dos presídios, inclusive nas atividades de comércio de drogas. Mais pessoas foram para cadeia e lá permaneceram por mais tempo, e uma parte muito considerável deles é composta de jovens que desenvolvem atividades subalternas na cadeia produtiva do comércio de drogas – condenações que, portanto, não chegam a incomodar a estrutura desse mercado. Parecem, ao contrário, fortalecê-la.
Esses fatos nos obrigam a indagar se prender jovens pequenos traficantes, os quais têm uma inserção periférica nos negócios da droga, tem servido a combater as formas organizadas de atividade criminal ou tem servido a fortalecer grupos criminais organizados que têm nas cadeias um importante ponto de articulação de suas redes. Lamentavelmente, parece que temos motivos para acreditar na segunda hipótese.
Os estudos internacionais de criminologia têm mostrado que a repressão a uma conduta ilegal é efetiva se for constante e certeira, pouco dependendo para esse resultado a quantidade de pena abstrata estabelecida. Ora, para reprimir um mercado tão pujante como o comércio de drogas ilícitas no Brasil – se esse é realmente um fim coletivamente desejado – é preciso levar em conta que os recursos de repressão disponíveis, seus custos e evidentemente os seus resultados. Parece muito razoável que as penas mais duras e caras devem ser reservadas para aqueles que coordenam as atividades do tráfico, ganhando muito dinheiro com isso, e que penas mais baratas e mais eficazes devem ser aplicadas àqueles que ocupam posições mais periféricas na economia ilícita.
Portanto, a discussão de penas alternativas para ditos pequenos traficantes, ao contrário do que se possa argumentar, não é uma forma para facilitar a vida dos traficantes e amenizar a repressão. Ao contrário, é o único caminho racional para que o sistema penal possa efetivamente expandir suas atividades de repressão a um número maior de pessoas, poupando recursos para as investigações mais sofisticadas e as prisões necessárias dos que cometem crimes violentos. Estamos falando de racionalização econômica e criminal: menor custo de repressão para o Estado, aumento de sua eficácia e condições mais favoráveis para a inserção dos apenados em atividades econômicas legalizadas.
Há ainda outro aspecto a ser considerado na discussão sobre a melhor forma de incriminação dos ditos pequenos traficantes. Os estudos sobre polícia no Brasil têm todos convergido para a constatação de que a incriminação por uso ou tráfico de drogas é o resultado de uma negociação entre o acusado flagrado e o entendimento policial daquela situação. Ou seja, na prática, é muito difícil estabelecer uma linha divisória nítida entre quem porta uma quantidade generosa de drogas para uso e quem porta uma pequena quantidade para a troca.
A própria dinâmica do uso e da troca dos entorpecentes produz constantemente esse borramento. E na medida em que a própria lei recusa estabelecer um marco quantitativo para caracterizar o uso ou a troca, a lei em si reconhece e promove a confusão dessas posições. Ora, então é lógico pensar em equiparar o tratamento penal dado ao pequeno traficante e ao usuário, que hoje pode receber uma pena alternativa.
Por todas as preocupações expressas, espera-se fortemente que a saída do secretário não signifique o abandono por parte do governo federal, nem por parte da sociedade, de um debate que precisa ser feito com seriedade e urgência. As atuais estratégias de repressão criminal à economia ilícita das drogas não estão realmente produzindo o efeito prometido. E o país não está em condições de se dar ao luxo de recusar boas propostas nessa área.
Jacqueline Sinhoretto é socióloga. Professora do Depto de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Pesquisadora do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de Conflitos INCT/InEAC. Participa, no Núcleo de Estudos da Violência da USP, de um projeto internacional de pesquisa sobre mercados ilícitos e globalização.

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