Serviço Civil em Saúde

 Por Diângeli Soares

A proposta de instituir um Serviço Civil em saúde, para expandir a cobertura assistencial em áreas remotas do país, começa a deslanchar. A idéia voltou a ser assunto ainda em 2009, quando o Conselho Nacional de Saúde deliberou, em reunião ordinária, ser a favor da criação de um serviço civil em saúde para egressos de escolas públicas. Logo depois, no mesmo ano, voltou a tramitar no congresso uma série de Projetos de Lei propondo que o serviço fosse instituído em caráter obrigatório. A discussão ameaçou sair de pauta, quando as modificações no Serviço Militar Obrigatório para médicos e outros profissionais da área da saúde vieram à baila. Entretanto, recém completados cem dias do novo governo, a idéia mostra que veio para ficar. Desde o dia 18 de Abril, Estudantes de medicina de todo o país estão respondendo a questionários do Ministério da Saúde sobre a implantação do projeto, já apresentado no começo do mês em Brasília, durante Seminário Nacional sobre Escassez, Provimento e Fixação de Profissionais de Saúde em Áreas Remotas e de Maior Vulnerabilidade

A proposta que vem sendo apresentada pelo novo Ministério da Saúde parece ser uma evolução da idéia original. Não se fala mais em obrigatoriedade, mas sim em voluntariado. Trocada em miúdos, a proposta da SGETES (Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde) é criar, sob o nome de “serviço civil”, um pacote de incentivos para que os egressos dos cursos da saúde se estabeleçam em áreas de maior vulnerabilidade, mesmo que por períodos curtos, de um a dois anos. O caráter destes incentivos é justamente o ponto no qual os estudantes estão sendo convidados a opinar. “O que faria com que você deixasse Porto Alegre para se estabelecer em um lugar como Nova Ipixuna, Pará? Salário? Pontuação extra para a prova de Residência? Auxílio-Moradia? Outros? Quais?”

Isto posto, e considerando o atual estágio em que a discussão se encontra, é importante destacar algumas coisas, tanto sobre o “velho” quanto sobre o “novo” projeto de serviço civil.

Primeiramente, é tranquilizador observar que a proposta de um serviço civil obrigatório parece, a princípio, não encontrar eco no Executivo. A concepção de um serviço civil “compulsório”, aos moldes do Serviço Militar, com foco nos egressos de escola pública, tem pelo menos dois efeitos nefastos sobre a cultura política do Brasil: Primeiro, reforça o entendimento distorcido de que a educação pública é “favor” e não direito, já que o serviço civil serviria como “pagamento” por um ensino pretensamente gratuito. Sabemos bem que não é. O segundo, é o impacto sobre a saúde pública, especialmente no que se refere à Atenção Primária. Não interessa a ninguém, muito menos aos usuários, transformar a porta de entrada do sistema em um eterno “bico” de recém-formados (desestimulados e mal remunerados). Se o Ministro Padilha fala sério quando diz que a “busca da qualidade na assistência é um fator essencial para a consolidação do SUS”, encontraria na proposta de um Serviço Civil Obrigatório o seu maior obstáculo.


Entretanto, se a proposta avança no sentido da não obrigatoriedade, a descaracterização do Serviço Civil, tal qual ele vem sendo concebido desde sempre, implica em outros riscos. Dentre os maiores incentivos oferecidos, encontramos inúmeras fragilidades. Por exemplo: Salários dignos são fundamentais, mas não têm se mostrado efetivos o bastante. Não são poucas as prefeituras do interior que oferecem remunerações muito acima dos preços de mercado sem que tenham seus problemas resolvidos. Salários próximos aos do topo da carreira judiciária, que tanta inveja causa dos médicos, infelizmente não têm se mostrado eficazes em fixar ninguém. A pontuação extra nas provas de residência, um incentivo bastante sedutor para qualquer recém-formado, também levanta dúvidas. A concessão de benefícios na pontuação de análise curricular e em provas de residência médica e multiprofissional já foi submetida a veto presidencial por inconstitucionalidade uma vez, quando tramitou no âmbito das alterações do Serviço Militar, em 2010. Ademais, quais seriam os médicos atraídos por esta política? Provavelmente os que não são aprovados logo que se formam, que em maioria são os que desejam se especializar em áreas com pouca oferta de vagas, como Oftalmologia, Dermatologia, Otorrinolaringologia, etc, todas áreas pouquíssimo afins com a proposta da atenção primária.

A concessão de títulos de especialista e a garantia de suporte de ensino, tanto in loco quanto à distância, a partir de universidades-referência, parecem ser as propostas mais interessantes. Muitos irão se perguntar porque, então, não expandir maciçamente os Programas de Residência Médica (PRMs)? Basicamente porque sobram vagas de Residência em Medicina de Família e Comunidade em todo o país, porque a instalação de um PRM demanda maior estrutura (e custo) do que está sendo proposto (ou do que é praticável em determinadas áreas) e o valor da bolsa é muito inferior aos valores de mercado. Assim, frente a todas estas dificuldades, seria positivo que mais serviços de atenção primária do país fossem supridos com supervisão e apoio acadêmico. Entretanto, é importante não se enganar: o impacto desta ação se restringe à qualidade e não à quantidade. Titulação e supervisão vai melhorar muito a vida de quem já está lá, mas não deverá levar muito mais pessoas para a atenção primária dos ditos “grotões”, pelo menos no curto prazo.
As propostas de Serviço Civil sempre tiveram sentido pelo seu caráter quantitativo e não qualitativo. Faltam médicos, enfermeiros e dentistas? Porque não usar essa imensa massa de jovens que se formam todos os anos? Se servir a pátria é monitorar as fronteiras, porque servir à pátria não pode ser servir de médico no interior? O apelo do Serviço Civil, perante gestores, usuários e parlamentares, sempre foi atrelado a sua capacidade de suprir os serviços em termos de mão de obra, mesmo que em caráter emergencial, muito mais do que por seus eventuais impactos na qualificação do sistema, ainda que estes sejam bem-vindos. E esta é a grande fragilidade do Serviço Civil de caráter voluntário. Se a partir de 2012 é instituído um serviço civil obrigatório para médicos, a partir de 2012 o Estado sabe que poderá contar com pelo menos 15 mil novos médicos para distribuir por todo o país. Se em 2012 é instituído um Serviço Civil Voluntário, a garantia de aporte já não é mesma. E provavelmente será bem mais modesta.

A conclusão, portanto, é de que se a proposta vem no sentido de combater a “escassez” e de promover a “fixação”, todas palavras que deram título ao seminário nacional realizado em Brasília, nos dias 13 e 14 de Abril, o serviço civil voluntário é uma proposta de impacto bem menor do que pode estar sendo imaginado. Tanto que a própria caracterização do projeto como “Serviço Civil” merece ser questionada, uma vez que, na ausência de obrigatoriedade, a designação de “Serviço Civil” passa a ser nada mais, nada menos, do que o “serviço” que é prestado pelos “civis”. Sem novidade alguma que mereça a distinção de um nome próprio.

Para além do nome, é importante pensar se os incentivos à fixação de curto prazo (um a dois anos) na atenção primária de fato compensam. Não havendo um aporte significativo de mão-de-obra para a periferia desassistida no curto prazo, os impactos negativos sobre as tentativas de qualificação da Atenção Básica e de reestruturação do sistema a partir dela podem acabar sendo bem maiores do que os benefícios.

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