Quem discute o que resta da ditadura civil-militar

241111_quemBrasil de Fato - [Marcelo Netto Rodrigues] Coletivo quer pautar questões que foram relegadas a segundo plano, como "Quem apoiou? Quem financiou? Quem se beneficiou com o Golpe de 64?"

Não é por acaso que o pronome pessoal "nós" cede lugar ao pronome relativo "quem" quando membros do coletivo falam em seu nome. O pronome que pode ser usado tanto numa pergunta quanto numa afirmação se encaixa perfeitamente no rol de provocações de Quem, que no início do ano carimbou notas de real com indagações sobre a tortura de Dilma Rousseff e os assassinatos de Frei Tito e do estudante Vannucchi Leme. Para Quem, mais importante do que debater "o que" foi a ditadura civil-militar é discutir "quem" foram seus autores, na tentativa de – tendo isso muito claro – reescrever uma outra história a partir de um outro sujeito.
"Há um outro 'quem', que perguntando quem escreve a história, quem a interpreta, quem fez o golpe pode alterar o sentido e a sua interpretação e se tornar, portanto, um outro sujeito dessa construção. Esse segundo 'quem' é o 'quem' que afirma e não o 'quem' que pergunta." Leia abaixo trechos de uma entrevista com Quem.
Quantas notas foram carimbadas?
Não temos como contabilizar o número de notas. Quem carimbou notas em São Paulo, Brasília, Santa Catarina e Paraná. O objetivo é ampliar a rede de carimbadores. De maneira que as pessoas ao acessarem o blog [http://quemtorturou.wordpress.com/] – que explica como fazer – adiram a essa ideia. A pergunta "Quem torturou Dilma Rousseff?" foi carimbada em notas de R$ 2; nas de R$ 20, questionamos a morte de Frei Tito; e nas de R$ 50, perguntamos sobre o assassinato do líder estudantil Vannucchi Leme. A ideia inicial do grupo era reatualizar a obra do Cildo Meirelles [artista que carimbou notas de 1 cruzeiro, por acreditar ser a de maior circulação, com a pergunta "Quem matou Herzog?"]. Hoje, com exceção da de R$ 100, todas têm ampla circulação. Quanto a cartazes, espalhamos uns 5 mil no centro de São Paulo. Quanto ao retorno das cédulas, já tivemos conhecimento de uma pessoa que a pegou num pedágio.
Como surgiu essa inspiração?
Foi um pontapé inicial quando Quem foi a Bienal de Artes de São Paulo. Havia lá uma espécie de retrospectiva das obras do Cildo e Quem se interessou e acreditou que isso poderia ser de alguma forma reatualizado, dado que Quem queria levar essa discussão sobre os resquícios, o saldo, o rescaldo da ditadura civil-militar. Como Quem acredita que a ditadura permanece de alguma forma, não evidentemente na forma de um Estado com poder hipertrofiado, mas na forma de um Estado que conserva a aparelhagem que foi estabelecida durante a ditadura e que, fundamentalmente, setores vinculados à ditadura civil-militar continuam ainda sendo os setores estratégicos da sociedade, então Quem acreditou que seria importante resgatar o trabalho do Cildo no atual contexto. No intuito de que o debate também tivesse ampla circulação, surgisse em outros espaços, além de círculos acadêmicos e jornais.
O uso do nome da Dilma carimbado nas notas pode sugerir que Quem seja um defensor do PT. Quem possui alguma filiação partidária?
Quanto a isso, em seu blog, Quem publicou inclusive um artigo da Dilma, de 2005, que não tem mais circulação pela internet, no qual ela defende a abertura dos arquivos, quando ela era ainda vice-chefe da Casa Civil. Esse momento é importante para demonstrar que não há partidarismo nenhum da parte de Quem, porque expusemos a Dilma nas suas contradições presentes agora. E justamente daí é que vem a ideia de explorar a imagem da Dilma como presidenta. Uma presidenta que foi torturada e que encontra dificuldades em tatear uma posição a respeito da abertura ou não dos arquivos, uma questão fundamental para a futura Comissão da Verdade que venha a ser instalada. O nome da Dilma funcionou muito mais como uma estratégia de chamar a atenção para o debate.
Por que a escolha do nome Quem?
Porque Quem pensa que tem um discurso que foi calado. Que houve um deslocamento da discussão sobre aquilo que foi o regime de arbítrio, das causas e dos motivos que levaram à instalação do regime, para uma discussão sobre direitos fundamentais, sobre direitos humanos. Nesse sentido, Quem acha que a pergunta "Quem?" resgata a ideia de "Mas, enfim, a quem interessava que naquele momento se instalasse o regime. Quem torturou? Quem assassinou? Quais são os interesses que se escondem por trás da criação de um Estado de exceção? O que acontecia no âmbito das estruturas do poder?". Dessa forma, Quem acaba criando uma diferença fundamental entre perguntar o que é uma ditadura – que pode ser respondida como uma situação em que os direitos fundamentais são afetados – e o quem são os autores, os interessados, quais forças políticas e econômicas, empresas, interesses ideológicos estavam por detrás. Quem pode até reorganizar pautas futuras com outras perguntas como "Quem efetivamente apoiou o golpe? Quem se beneficiou? Quem financiou?". Questões que ainda não estão disseminadas no debate sobre a ditadura civil-militar.
Como aconteceu esse pulo entre o quem estava por trás do regime e o fato de vocês se denominarem Quem? Porque são dois "quens", o "quem" que tinha um interesse no regime e o "quem" que acabou sofrendo as consequências dele...
A pergunta que Quem faz é uma pergunta que pode ter duas respostas. Mesmo porque Quem acredita que todo o processo histórico, no final das contas, longe de ser um fato é simplesmente um sentido ou uma interpretação que quem atribui a um conjunto disperso de acontecimentos. Até agora esse sentido, essa interpretação, foi dado por quem apoiou o golpe, por quem escreveu a história, por quem inaugurou a Nova República, por quem fez a Constituição. Mas, há um outro "quem", que perguntando quem escreve a história, quem a interpreta, quem fez o golpe, pode alterar o sentido e a interpretação e se tornar, portanto, um outro sujeito dessa construção. Esse segundo "quem" é o quem que afirma e não o "quem" que pergunta. E essa dualidade de "quem", para nós, traz uma questão que é central e que tem a ver com a tentativa de politizarmos o debate sobre a ditadura civil-militar e as suas consequências, seus resquícios, que é a ideia de que aquilo que está em jogo no processo de produção da história, no processo de criação de uma narrativa, é sempre uma luta entre "quens", uma luta entre classes, uma luta entre forças. É isso que está em conflito. Portanto, Quem não tem problema em se dizer revisionista porque revisionismo para Quem não é a substituição de uma história por uma história mais verdadeira. É a tentativa de reescrever uma outra história a partir de um outro sujeito, de um outro quem. Uma outra interpretação é a de desoficializar um discurso, que embora não seja um discurso verdadeiro já tem uma história, e tentar oficializar outras vozes, de testemunhas que sofreram direta ou indiretamente com a ditadura civil-militar, para que o Estado tome uma posição diante dessas vozes, dessas novas verdades que estão surgindo.
O nome veio daí, então?
Sim. Mas também recorremos à Dialética do Esclarecimento, do Horkheimer e do Adorno, quando os dois trabalham o encontro do Ulisses com o Polifemo. No momento da fuga da ilha, quando ele fura o olho do Polifemo, o Polifemo pergunta o nome dele e ele fala: "Meu nome é ninguém". E na hora de fugir, cego já, e procurando ajuda dos outros, grita por socorro e diz: "Ninguém furou o meu olho, ninguém está fugindo". Na dialética, Ulisses foi astuto no sentido de jogar com a palavra "ninguém". Então, a ideia inicial nossa é jogar com a palavra "quem" também. Causar uma confusão quando Quem afirma, por exemplo, "Quem está colando cartazes em São Paulo". Enfim, Quem está fazendo algo que pretensiosamente Quem diz que é algo que toda sociedade deveria fazer se pretensamente ela quer ser democrática no sentido forte da palavra, levantando pautas que não são tão exclusivas de pessoas que se nomeiam, mas importantes para toda a sociedade.
No seu blog, vocês falam de "justiça de transição" para o Brasil? Vocês podem explicar melhor o que isso significa?
Quem fala da justiça de transição como algo necessário para um país, como o Brasil, que viveu sob uma ditadura civil-militar durante 21 anos. Um país que sai de um regime autoritário em direção a um regime democrático deve passar pelo processo da justiça de transição, que constitui-se basicamente em quatro pontos: a reparação das vítimas – que é a única coisa que o Brasil efetivamente fez; a reforma das instituições que perpetraram os crimes e que se transformaram em "máquinas de matar" – os DEOPS e o SNI foram extintos, mas o Exército e a Polícia Militar não foram reformados, o que faz com que a dinâmica de operar ainda seja a mesma; o terceiro passo tem a ver com o direito à memória e à verdade – que está em ampla discussão hoje com a criação da Comissão da Verdade; e por último, a responsabilização dos que torturaram e mataram, que toca no processo de anistia. Quem acredita que esse processo, que tem como meta alcança a democracia liberal burguesa, é importantíssimo, apesar de este não ser o nosso objetivo. Quando trata-se desta concepção de democracia, que nos foi legada pela Constituição de 88, que nos foi legada pela "dita" Nova República, Quem pensa como Florestan Fernandes: "Sabe-se que a democracia burguesa é em si, e por si mesma, uma mistificação. Em nome da liberdade, ela caça a liberdade dos trabalhadores. Em nome da igualdade dos cidadãos, impõe a supremacia social da burguesia. Em nome da representação, consagra o monopólio do poder pela elite dirigente das classes dominantes". Quem também pretende, no que diz respeito às suas ações, problematizar essa ideia de democracia que de alguma forma está presente inclusive no texto, no projeto de lei, que cria a Comissão da Verdade, quando aparecem as expressões "reconciliação nacional" e depois em um adendo, "consolidação da democracia". Que democracia é esta? Quem pensa que é a democracia liberal burguesa e Quem pretende, para além disso, dar um passo a mais.
Quem critica o uso da palavra "vítima" como forma de tratamento das pessoas atingidas pela ditadura. Podem explicar melhor o porquê disso?
Há um discurso disseminado que temos de descobrir quem foram os torturadores, responsabilizá-los, pois, afinal de contas, muitas pessoas sofreram com o regime. Essas pessoas que foram presas, torturadas, assassinadas e os seus familiares seriam vítimas da ditadura. Esse vocabulário é problemático porque despolitiza e personaliza todo um discurso histórico. Ao socializar o trauma dessa forma, se socializa um trauma de sofrimento individual e se esquece que aquela pessoa foi um ator político que tinha determinadas ideologias e um projeto de país naquele momento. Dessa maneira, Quem optou por substituir a terminologia vitimista pelo termo "afetados pela ditadura civil-militar" por inspiração de um movimento espanhol, chamado "afetados pelos atentados de 11 de março", que justamente se recusou a se designar como movimento das vítimas dos atentados, porque o termo "vítima" mostrava uma postura de reivindicação orientada para a simples reparação econômica ou judicial enquanto que o coletivo espanhol, assim como Quem também pretende isso, queria estender o debate a questões políticas mais amplas. Além disso, a problemática vitimista conduz ao encerramento dos indivíduos concernidos nas duas figuras públicas, ou da "dor muda" ou da "dor espetacular". Ou seja, ou se diz que o sofrimento vivenciado por um sujeito que sofreu tortura é inenarrável, e que, portanto, ninguém pode saber o que se passou, ou então se "espetaculariza" esse sofrimento, um pouco como algumas emissoras de TV têm feito, fazendo com que esse sujeito exponha reiteradamente o seu suplício. Esses dois modos de se lidar com a problemática do sofrimento, parece para Quem fazer com que ele seja instrumentalizado de forma a despolitizá-lo, porque se perde a ideia de que o sofrimento é um sofrimento social, coletivo. E, finalmente, essa lógica vitimista induz à noção de que apenas as vítimas e a sua família mais próxima se vejam reconhecidas como sofredores legítimos enquanto que acontecimentos coletivos como um atentado, no caso espanhol, ou uma ditadura civil-militar, no nosso, que afeta um conjunto de indivíduos e relações sociais mais amplas não sejam vistos da mesma forma.
Qual a preocupação de Quem, afinal?
Quem está preocupado com o trauma de se viver sob a égide de um Estado de exceção, no qual as liberdades mínimas são aniquiladas. Daí vem a ideia de se resgatar projetos políticos das pessoas que participaram da resistência e da luta contra a ditadura civil-militar, resgatar um outro projeto de país. Ou seja, existe um discurso que foi calado pela ditadura e que continua calado.

http://www.diarioliberdade.org/index.php?option=com_content&view=article&id=21916%3Aquem-discute-o-que-resta-da-ditadura-civil-militar&catid=68%3Aantifascismo-e-anti-racismo&Itemid=82

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