GUEST POST: CICLISTAS ATROPELADOS E MOTORISTAS COVARDES


Acho que já deixei claro em alguns posts que não gosto de carros, que precisamos encontrar outras alternativas de transporte, e que automóvel é apenas um veículo, não um sinal de status. Mas o carro em si é só um carro, um objeto inanimado. É preciso de um motorista pra que ele ande. E é preciso um motorista para cometer barbeiragens, desrespeitar leis detrânsito, e se por acima da vida dos demais. O que aconteceu sexta em Porto Alegre revoltou todo mundo. Eu já tinha pedido faz tempo pra um leitor, o Thiago (Nefelibata), escrever um guest post sobre essa cultura de idolatria ao automóvel, e como ela funciona como fator de opressão social. Ele, que acabou de se formar em Direito, me enviou um texto fascinante, mas longo. Pretendo publicar outras partes depos. Esta é a mais urgente:

Sempre fui muito crítico ao uso indiscriminado de automóveis, e, naturalmente, sempre fui muito repreendido e ridicularizado por isso. Dessa forma, acho triste ter que acontecer algo como obárbaro atropelamento ocorrido em Porto Alegre na sexta-feira última para que as pessoas no geral parem para pelo menos tentar refletir sobre o papel do carro na sociedade. No dia 25 de fevereiro, cerca de uma centena de ciclistas estavam a passeio nas ruas, num movimento chamado de Massa Crítica. Havia adultos com crianças na garupa, idosos, até mesmo um cachorro numa cestinha. Então, um carro com motorista impaciente resolve literalmente passar por cima. Toma distância, acelera e faz igual àqueles jogos de videogame estilo Carmageddon e Grand Theft Auto; simplesmente atropelando quem quer que estivesse na sua frente. Felizmente, a maioria escapou do atropelamento ao ouvir o ruído, mas dez foram feridos e, ainda de acordo com a notícia do Terra, cinco foram hospitalizados (Folha fala depois em dezesseis atropelados e oito hospitalizados).
Casos de ciclistas atropelados por motoristas no mínimo irresponsáveis são motivo de luta para grupos de bike Brasil afora (neste link o exemplo de ciclistas mortos notrânsito e homenageados com ghost bikes). Embora não vejamos com frequência um carro sozinho atropelando uma massa de ciclistas, é fato que essas pessoas são agredidas todos os dias nas ruas, seja moralmente, psicologicamente ou fisicamente. O que houve em Porto Alegre simplesmente ilustrae resume tragicamente a realidade cotidiana. E o que está por trás disso é um elemento cultural específico, que cresce descontroladamente e nos brutaliza, e que é preciso combater. Podemos ver esse elemento claramente, por exemplo, nos comentários de notícias sobre esse caso, muitos dos quais dão razão ao motorista ou no mínimo dizem que os ciclistas “procuraram” por isso, tendendo a aliviar ou mesmo eximir a culpa do atropelador.Tudo bem que comentários de notícias na Internet geralmente são uma ótimavitrine para muito do que há de pior na humanidade, mas o que pensar quando a autoridade pública se manifesta no mesmo sentido? Pois foi assim com o delegado Gilberto Almeida Montenegro, responsável pelo inquérito do caso:
"O primeiro erro crucial foi esse evento ciclístico. Esse grupo cometeu um erro grave, qualquer evento desse porte se avisa a Brigada Militar (BM), a EPTC (Empresa Pública de Transporte e Circulação), a Secretaria de Segurança, para se formar um aparato para evitarsituações desse tipo".
"Aqui não é a Líbia. Aqui tem toda a liberdade para fazer manifestação, desde que avisem as autoridades. Faz a tua manifestação, mas não impede o fluxo de automóveis. Se tu impedes, dá confusão, dá baderna, dá acidente. Fica o alerta".

O que o delegado disse é um absurdo (nem quero tentar descobrir o que ele pensa sobre a Líbia). Por que deveria avisar? Como bem disse o Bicicreteiro, todos os dias milhões de automóveis travam o fluxo de tudo que há nas pistas, em manifestações barulhentas, cheias de buzinas, e não avisamninguém. As bicicletas em Porto Alegre andavam em velocidadeaté maior que os carros nesses eventos. Como uma pessoa da lei, o delegado Montenegro deveria saber que o Código de Trânsito Brasileiro entende bicicletas como veículos, tal comocarros (Lei 9.503, artigo 96, inciso II, alínea a). Então, por que diabos uma centena de ciclistas não podem sair nas ruas semavisar as autoridades e milhões de carro podem? Por que o carro merece tratamento privilegiado? Pela fala do delegado, inclusive, até as manifestações são um detalhe perto do fluxo de carros. Não interessam os valores humanos pleiteados nas manifestações; os automóveis são mais importantes. E ele não entende que se tem umamanifestação popular, é porque essas pessoas estão insatisfeitas com algo e lutam por umdireito que acreditam possuir. Mas na sociedade individualista de hoje, a maioria da população não liga para nada que acontece para fora da porta de casa ou do carro. Então, o sentido de qualquer protesto é justamente atrapalhar os outros um pouco, para que possam parar e perceber que existe algo de muito errado acontecendo. Exatamente por isso, o panfletodistribuído até pelo menos antes do atropelamento diz: “Olá, amigo motorista, tudo bem? Desculpa por hoje estarmos atrapalhando um pouco mais o trânsito de vocês, masnormalmente é o contrário”.
Quando o panfleto pede para que os motoristas respeitem os ciclistas, diz que “tudo isso é lei; mas não é por ser lei, é para não nos assustar, ou pior, não nos machucar ou até matar. É,acima de tudo, para mostrar que você é um cidadão”. É precioso o que diz, para não respeitar o ciclista só porque é lei. É importante dizer isso, que a lei não é um fim em si, que não é só porque algo está na lei que é absolutamente correto. Lembremos que muitas lutas sociais visavam exatamente à revogação de leis opressoras. Escravidão já foi legalizada, adultério já foi delito, o casamento homossexual ainda é ilegal, o aborto ainda é crime, por exemplo. Por isso, não podemos admitir que se dê alguma razão ou atenuante ao criminoso de Porto Alegre quando nos vierem com essa do Código de Trânsito:

Art. 58. Nas vias urbanas e nas rurais de pista dupla, a circulação de bicicletas deverá ocorrer, quando não houver ciclovia, ciclofaixa, ou acostamento, ou quando não for possível a utilização destes, nos bordos da pista de rolamento, no mesmo sentido de circulação regulamentado para a via, com preferência sobre os veículos automotores.

“Bordos da pista de rolamento” significa a faixa mais à direita. Ou seja, o ciclista deve, por lei, deixar a faixa da esquerda livre (quando houver duas faixas). No caso de Porto Alegre, não havia ciclovia/ciclofaixa, não havia acostamento, havia mais de uma faixa e os ciclistasestavam usando todas elas. Errado? Não, porque era um protesto. “Ah, então os ciclistas não estavam saindo normalmente de casa como os motoristas do cotidiano! Nesse caso deveriam ter chamado a polícia!”. Não de novo, porque o sentido do protesto é justamente o de ocupar as ruas inteiras, sem escolta policial, tal como ocorre com carros nas ruas todos os dias. Assim, talvez mais pessoas consigam ver que “existe uma alternativa muito divertida, não poluente, silenciosa e saudável para o transporte”.
Contudo, o pior é que o absurdo dito pelo delegado Montenegro é coerente. A fala dele é porta-voz da cultura de idolatria do automóvel e de violência do motorista, e essa cultura se traduz na realidade como uma verdadeira forma de opressão social. No seio da humanidade esses fenômenos são, infelizmente, múltiplos e variados; machismo, racismo, elitismo, homofobia, xenofobia, etc. E dentre eles, há também essa opressão do motorista de carro não apenas contra ciclistas, mas também pedestres e até mesmo os famigerados motoqueiros. Adenúncia dessa forma de opressão é algo relativamente recente, e talvez isso ajude a explicar porque até mesmo gente da esquerda ou “progressista” não a perceba, ou, na pior das hipóteses, negue-a como qualquer conservador faria.
Afinal de contas, como toda forma social de opressão, ela não é apenas sustentada pelo Estado e pela política; é também respaldada por parte da população. E no caso particular da opressão pelo automóvel, há aquele detalhe que dificulta o combate: é razoavelmente fácil “escalar a pirâmide” social e passar de oprimido a opressor. No Brasil economicamenteascendente de hoje, basta a simples tarefa de financiar um carro. E então, com essa possibilidade sempre em vista, e com uma enorme massa popular potencialmente motorista de carro, ocorre a internalização do opressor no oprimido; não se busca acabar com o conflito,mas entrar no lado de quem está ganhando e, assim, reproduzir a desgraça – que só será desgraça para os outros a partir de então. Por isso não é difícil ver alguém que pega transporte coletivo todo dia achar normal os excessos dos motoristas. Essa pessoa deseja que um dia ela mesma possa cometê-los logo que puder usar um carro. Prefere, dessa forma, tal como um capitão-do-mato, “trair a sua classe”, indo contra seus próprios interesses na condição de não-motorista, em nome da opressão da qual um dia espera fruir. Assim se perdoam barbaridades do opressor-condutor; elas não são mais vistas como injustiças, mas sim como caprichos, luxos, privilégios, direito! Se alguém tem culpa, é quem se opõe: o não-motorista. Aplica-se desse jeito uma espécie de vingança, tal como ocorre em trotes: toda a violência recebida terá que ser devolvida com os juros da espera.
O sórdido detalhe desse tipo de internalização do opressor e vingança social é que o oprimido traidor de sua classe não devolve a truculência acumulada em si contra as pessoas que lheagrediram inicialmente. A vingança não pode ser contra eles porque a partir do momento em que o oprimido troca de lado e sai de baixo para cima, ele vai querer reconhecimento de seusnovos pares, e não conflito pessoal com eles – o que poria a perder o mundo que quer ganhar. Quem sobra então são aqueles que permaneceram embaixo, e serão eles efetivamente o alvoda vingança. Essa retribuição de males cumpre muitas funções: faz com que os já presentes no topo da pirâmide reconheçam o recém-chegado como um de seus iguais, faz com que o antigo oprimido assassine seu passado, exorcizando o fato de que ele mesmo já foi um dia umdaqueles miseráveis que não valem mais nada, e, por fim, proporciona a sensaçãoimediata e direta do poder.
Dessa forma, como toda forma social de opressão, a violência do automóvel também se baseia na agressão do forte contra o fraco. Assim como um homem abusa da mulher por meio de sua força física normalmente superior, um motorista de carro abusa de todos na rua porque está protegido por uma arma de vários cavalos de potência e uma armadura de mais de uma tonelada. Em uma palavra: covardia.
Mas essa é somente a forma direta de opressão, a forma imediata. Há também a forma indireta, mediata: como toda forma social de opressão, o motorista também é protegido pela organização dessa mesma sociedade em detrimento de suas vítimas. Assim como a proteção institucional explícita ou sutil que homens têm em crimes contra mulheres (chegando mesmo ao ponto de alguns juízes negarem-se a aplicar a Lei Maria da Penha – cujo um dos objetivos é justamente combater esse acobertamento), que ricos têm em crimes contra pobres, motoristas também recebem a forma mais desprezível do benefício da dúvida; no caso em Porto Alegre, já tem gente dizendo que os ciclistas é que começaram a bater no vidro do carro e a fechar o motorista, como se isso o exculpasse do crime que cometeu. E até agora há quem insista em chamar o ocorrido de “acidente”, “erro do motorista”. Para mim, erro é quando a gente não consegue fazer o que quer. Por exemplo, quero acertar uma questão, respondo e não está certo: errei. Quero atingir um alvo, tento, e não consigo: errei. Um dos ciclistas filmava o local na hora do “acidente”. Isso parece um erro para quem? Se existe algum erro do criminoso, é que ele não conseguiu acertar tantos ciclistas quanto pretendia. Isso é tentativa de assassinato, contra várias vítimas de uma vez só. E ainda fugiu sem chamar as autoridades, o que constitui infração gravíssima no Código de Trânsito (artigo 176) e crime (Código Penal, artigo 135 – omissão de socorro). Dizer que é “acidente”, e de novo concordo com o Bicicretero, é entender que o motorista é sempre o “coitadinho” da história, que é sempre um outro maluco que se joga na frente do carro, que no noticiário, antes de sabermos o estado da vítima de atropelamento, somos informados da extensão do congestionamento que ela, a vítima, provocou. Sabe aquela história da mocinha ser a culpada pelo estupro porque estava de minissaia? Pois é.
O resultado de todo esse arranjo de violência e proteção dos violadores é, como também ocorre em toda forma social de opressão, o medo. Dou aqui exemplo vivido pessoalmente: meu pai era ciclista assíduo e abandonou a bicicleta porque ficou com medo de morrer após algumas situações de perigo. Deu todas as três bikes que tínhamos em casa e encrenca comigo sempre que menciono voltar a pedalar. Isso significa que, nele, os motoristas conseguiram o que queriam: mostrar quem manda na rua. Mostrar quem é o dono da rua. Impuseram nele não apenas o medo, mas o sentimento de submissão, de subjugação.

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