Os franceses lembram-se com orgulho da gloriosa seleção que derrotou o Brasil na final da Copa do Mundo de 1998. Era um time multirracial, um reflexo, ao menos em tese, da composição étnica de uma França que teria acolhido de braços abertos cidadãos de ex-colônias e de departamentos fora da metrópole. Após aquela inesquecível vitória, os heróis da seleção desfilaram nos Champs Élysées, artéria principal de Paris. Tremulavam bandeiras tricolores, as “Bleus, Blancs, Rouge”, enquanto o povo homenageava Les Bleus, então aclamados os “Blancs, Blacks, Beurs”, estes últimos a identificar aqueles oriundos do Norte da África.
Lilian Thuram, pilar da defesa da seleção de 98, mais de 140 partidas com a camisa dos Les Bleus, é de Guadalupe. Patrick Vieira nasceu no Senegal, Marcel Desailly em Gana, e o capitão Zinedine Zidane, de Marselha, é filho de refugiados argelinos. Mas, se aquela mescla de bleus incluía futebolistas habilidosos e alguns geniais, e com excelente jogo de equipe, ela encarnava na verdade a ilusão de um suposto multiculturalismo francês. Neste país onde a neofascista Marine Le Pen chegaria, segundo as atuais pesquisas, no segundo turno das eleições presidenciais no início de 2012, o futebol parece estar em sintonia com os humores de significante fatia dos eleitores com inclinações racistas.
A proposta de limitar a 30% o número total de jovens árabes e africanos nas academias de futebol sob a égide da Federação Francesa de Futebol (FFF) criou grande polêmica. Parte da discussão envolve jovens de 12 e 13 anos com dupla nacionalidade, que, embora treinados na França, acabam representando os países onde nasceram ou dos quais vieram seus pais. Da reunião, realizada em novembro de 2010 no Conselho Técnico Nacional da FFF, que dirige sete centros de treinamento para jovens, participou Laurent Blanc, técnico da seleção nacional, e campeão do mundo em 1998. A história veio à tona em 28 de abril, quando o website investigativo Mediapart acusou- os patrões da FFF e Blanc de quererem “branquear os bleus”.
Chantal Jouanno, ministra dos Esportes, disse, após ler um inquérito sobre o tema, que não houve infração da lei contra discriminações. Mas definiu: “O assunto foi levantado de forma inadequada, inábil, com insinuações no limite da deriva racista”. A ministra acrescentou que, de qualquer forma, a proposta das cotas foi desconsiderada por ferir a lei de 2001 contra as discriminações e por estar “em contradição com os valores do esporte”.
Jouanno fez questão de poupar o treinador. Segundo ela, havia sido a primeira vez que Blanc participara de uma reunião do conselho da FFF. “Ademais”, afirmou a ministra, “ele não era o piloto nem o instigador da discussão.”- François Blaquart, diretor-técnico nacional da FFF, teve pior sorte: foi suspenso de sua função.
Blanc parece ser um técnico com algum talento, mas sem nenhuma habilidade para lidar com a mídia. Num primeiro momento, o treinador desmentiu as informações do Mediapart. Depois alegou que seus “comentários foram publicados fora de contexto”. Mas a Mediapart conseguiu a transcrição da conversa, em novembro, na sede da FFF, e a publicou ipsis litteris. Não se sabe ao certo como o veículo obteve a transcrição, mas a suspeita recai sobre Mohamed Belkacemi, conselheiro de equipes de bairros da FFF. Outro suspeito de vazar as conversas é o zagueiro Thuram.
Belkacemi diz ter entregado a única gravação para o diretor-adjunto da FFF no dia seguinte à reunião. Mas o diretor, estranhamente, não tomou nenhuma ação. Isso, claro, não invalida a hipótese de que Belkacemi tenha fornecido uma transcrição à Mediapart. De qualquer forma, o dirigente, que busca talentos em bairros dos subúrbios sensíveis e acredita no futebol como meio para integrar jovens desfavorecidos na sociedade, justificou para o diário esportivo L’Équipe o motivo pelo qual gravou a reunião, em novembro: “Sou simplesmente alguém que julga anormal que se possa dizer a um jovem de 12 anos: ‘Você não fará carreira no futebol por conta do teu nome’”.
Embora inocentado pelo presidente francês, Nicolas Sarkozy, e pela ministra Jouanno, Blanc se comprometeu bastante na reunião. Disse, entre outras coisas, ser “favorável” a uma mudança no critério de seleção de jovens talentos, em prol daqueles que compartilham “a cultura e a história da França”. Ainda segundo o Mediapart, Blanc sugeriu que o estereótipo do jogador, descrito por ele como “grande, forte e poderoso”, precisava ser mudado. “Quem é grande, forte e poderoso? Os negros. Isso é um fato. Deus sabe que há um monte deles nos centros de treinamento e nas academias de futebol.” Para piorar o quadro, segundo a Mediapart, fontes presentes na reunião disseram que Blanc contou o seguinte: “Os espanhóis dizem ‘nós não temos problemas porque não temos negros (na seleção)’”.
Consta que o fiasco da França na Copa do Mundo de 2010 contribuiu para o surgimento da proposta de limitar o número de negros e árabes na equipe tricolor. Para recapitular, Nicolas Anelka,- a estrela do time em 2010, insultou o então técnico Raymond Domenech. A FFF mandou Anelka para casa. Patrice Evra, o capitão, organizou uma greve. Anelka, vale lembrar, converteu-se ao islamismo. Frank Ribery, solidário a Anelka, é branco, mas também devoto da religião islâmica. E uma reunião da FFF parece ter levado em conta a religião e etnia dos grevistas da Copa.
À época do Mundial do ano passado, o vespertino Le Monde descreveu a seleção Bleu como um espelho da sociedade francesa contemporânea. Parece justa a comparação. Em meados da década passada, a França foi sacudi-da por violentas revoltas de jovens de origem árabe e africana nos subúrbios das grandes cidades. Sarkozy conseguiu piorar a situação na sua campanha presidencial, quando chamou os jovens rebeldes de “escória”. Em seguida, criou o Ministério da Identidade Nacional. Acabou por fechá-lo em 2010 sob fortes críticas, inclusive de conservadores. Para melhorar sua popularidade, voltou a atacar as minorias: no último verão expulsou ciganos da França, debaixo da tácita aprovação de considerável parte de seus conterrâneos. Sarkozy usa táticas lepenistas para ganhar votos da França profunda. Para a alegria de Marine Le Pen, filha do ultradireitista Jean-Marie, que só tem a ganhar em um país dividido por preconceito e ódio racial. Sarko deveria se perguntar: por que alguém escolheria a cópia se pode ter o original?
Como me disse Rob Hughes, jornalista de futebol do New York Times, política é política, independentemente do cenário: nos campos de futebol ou nos gabinetes e palácios. De fato. Zidane disse para o semanário Journal de Dimanche que o racismo existe no futebol francês, mas não tanto quanto na sociedade. E acrescentou: “O futebol francês não é racista”. Zidane defendeu Blanc: “Ninguém diz, mas sua mulher é de origem argelina”.
Gênio da bola, Zidane não foi o único jogador do time de 1998 a ficar ao lado do treinador. Neste caso, opõe-se a Thuram e Vieira. Thuram foi o primeiro a denunciar as posições racistas de Blanc: “Essa conversa de dupla nacionalidade é um álibi (para o racismo)”. Os bons jogadores ficam na França, os não tão bons vão jogar nos seus países de origem. Thuram tem razão. Mesut Özil, do Real Madrid, preferiu jogar pela Alemanha, onde nasceu, do que representar a Turquia de seus pais. Lionel Messi, que aos 13 anos obteve, em Barcelona, a nacionalidade espanhola, preferiu jogar pela Argentina. No caso, porque se sente argentino e porque os nossos vizinhos têm uma longa tradição no esporte, diferentemente da Turquia da família Özil.
Thuram é um homem de convicção. Em 2005, enfrentou Sarkozy quando este tratou os jovens dos subúrbios com desfaçatez. Fez mais: criou uma fundação para lutar contra o racismo e se opôs publicamente ao Ministério da Identidade Nacional. Escreveu artigos e um livro, premiado, contra o racismo. No campo político, existe um abismo entre Thuram e Zidane. E entre Thuram e Sarkozy. Como diz Hughes, do NYT, no fim das contas, política é sempre política. E Thuram escolheu o seu lado.
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