Alexandre Haubrich
Nos primeiros anos da década de 1960, um poeta de nacionalidade latino-americana, chamado Ernesto Guevara, apelidado de "Che", escrevia sobre a necessidade de expandir a revolução que acabava de começar em Cuba.
Naquele momento os barbudos da ilha haviam recém chegado ao governo, e a Revolução Cubana ainda engatinhava – a verdadeira revolução não se faz apenas até a derrubada do governo, mas no dia a dia da construção de um novo país, de uma nova sociedade.
A situação nos outros países da América Latina era a pior possível. Ditaduras se espalhavam pelo continente, capitaneadas por militares apoiados pelo governo dos Estados Unidos. A pobreza extrema e histórica nascida com a colonização e a escravidão, nos anos da chegada do imperialismo por essas bandas, passou a ser acrescida de uma repressão aberta. O capitalismo é, por definição, repressor, mas costumeiramente pratica essa violência através de formas mais sutis do que o cassetete, as balas e a tortura policial. Naqueles anos, tudo isso esteve junto, enquanto em Cuba o governo que representava esse ideário era derrubado por uma vanguarda revolucionária aliada ao povo oprimido, especialmente o povo das áreas rurais.
Che tentou levar a revolução a outros lugares, sem sucesso imediato. Combateu no Congo e na Bolívia, onde foi executado. Mas as ideias de Guevara sobre a "Revolução Latino-Americana" permanecem atuais, ainda que injustamente o argentino não receba como pensador político a mesma importância que recebe como símbolo.
O ideário guevarista parte, necessariamente, de uma visão humanista e, como tal, internacionalista. Os traços desses dois inseparáveis preceitos podem ser encontrados em cada ramo de ação ou pensamento de Che – trabalho, educação, economia, etc. "A luta contra o imperialismo é uma luta em escala internacional que só pode ser resolvida multiplicando-se o número de focos em outras regiões do terceiro mundo", disse certa vez.
O imperialismo massacra. Da mesma forma pela qual as elites nacionais oprimem o povo, os países hegemônicos oprimem as outras nações, saqueiam, exploram, invadem. A invasão pode ser grosseira ou sutil. Pode ser militar ou econômica, cultural e política. Quando a invasão sutil é inviabilizada por contextos internos ou internacionais, a prática comum imperialista é a guerra armada. Recentemente e de forma muito exemplar tivemos os casos do Afeganistão e do Iraque. A situação do Irã pode seguir pelo mesmo caminho – tentativas de criar clima propício para um ataque não têm faltado.
Ao desrespeitar a autonomia dos outros países, a prática imperialista – representada, hoje, sobretudo pelos Estados Unidos, mas também por Israel e por alguns governos europeus – trabalha no sentido de exploração econômica, que se dá através das mais diversas formas de ataque. A cultura ocidental moderna é o objeto favorito de inserção, e a transferência do ideário capitalista é o caminho óbvio para a dominação total. Dessa forma, além de explorar economicamente as demais nações, visa a unidade cultural, mas sem diálogo, sem interpenetração. É apenas a substituição de uma cultura por outra. A primeira, construída historicamente por um povo em suas relações totais. A segunda, imposta – de uma hora para a outra ou paulatinamente – de cima para baixo, braço da dominação.
Se o imperialismo, como força opressora necessária ao capitalismo, se faz cada vez mais presente no Oriente Médio, na América Latina a invasão começou antes. Não foi em um nem em dois países do continente que o processo de independência formal em relação à Europa sofreu influência dos norte-americanos, que se apressaram em se cacifar a novos tutores do território e do povo. Mais tarde, no contexto da Guerra Fria, o imperialismo norte-americano apoiou a chegada ao poder de ditaduras militares que se espalharam pela América Latina e atuaram, em grande parte, em parceria para a repressão aos mais diversos tipos de movimentos populares, a começar por alguns dos governos recém derrubados. Findadas e finadas as ditaduras militares, o desenvolvimento capitalista aprofundou, através de seu braço imperialista, a ditadura do capital. O imperialismo prosseguiu através de acordos econômicos desfavoráveis aos países do sul, sejam estes acordos assinados entre nações ou com organismos internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Governos entreguistas e/ou neoliberais e/ou corruptos favoreceram essa exploração em troca de favorecimentos políticos ou financeiros.
Assim como a massa desempregada pressiona os trabalhadores empregados a aceitarem piores condições de trabalho, cada governo cooptado pela força imperialista, aliado à incessante propaganda capitalista, causa pressão para novas iniciativas entreguistas. A cada nação inserida em seu longo abraço nada carinhoso, o polvo ganha novos tentáculos para juntarem-se aos seus, já tão numerosos e excitados.
É nesse contexto que o internacionalismo é uma bandeira inseparável da práxis revolucionária. Não defender o caráter internacional da revolução é sectarismo, e revolução e sectarismo não podem caminhar juntos sem fingimento. O sectarismo é, acima de tudo, antirrevolucionário, no sentido que damos à ideia de revolução como prática política de descoisificação do homem, de busca por autonomia, liberdade, igualdade, democracia. O sectário crê em sua palavra como única, não dialoga, não defende verdadeiramente a libertação do povo, mas uma nova submissão, agora submissão a ele próprio. Alia-se aparentemente ao oprimido para tornar-se opressor. Pensa setorialmente, não na totalidade. A luta internacionalista é, portanto, uma necessidade do verdadeiro revolucionário. Defender uma nova sociedade a ser instaurada apenas em seu país é torná-lo opressor dos demais, é fazê-lo imperialista. Faz, portanto, pior do que o atual imperialismo, pois se utiliza de forças rebeldes para tornar-se hegemônico, sem compreender – ou ignorando deliberadamente – que a hegemonia deve ser do povo, deve ser da totalidade, para que realmente se construa a democracia, a emancipação dos povos.
Os países latino-americanos possuem características históricas, culturais e políticas comuns, ainda que as diferenças específicas entre as nações impossibilite a ideia de unidade total. A longa exploração, primeiro europeia, depois – e até hoje – norte-americana é talvez o principal elemento comum, ou ao menos o elemento fundador de boa parte das outras semelhanças. A opressão a que todos esses povos são submetidos há séculos, desde seu "descobrimento", forjou nas populações exploradas um caráter de rebeldia latente, que em alguns momentos da História do continente foi provocado por lideranças e fez-se atuante em revoluções populares, de maior ou menor efetividade.
A língua semelhante, as raízes indígenas e certos traços da trajetória política interna também são elementos que unem as nações latino-americanas. Mas não há dúvida de que as aspirações independentistas são um laço fundamental, uma demanda comum que, por comum, torna necessária uma luta única. Alguns dos principais líderes políticos da região sonharam unir a América Latina como forma de enfrentamento ao império e de emancipação e comunhão entre os povos. Em períodos e sob formatos diferentes, Artigas, Bolívar, Martí e Guevara compreenderam essa necessidade.
Após o fracasso anunciado do modelo neoliberal, em cuja experimentação a América Latina foi usada como cobaia que chegou à beira da morte, as contradições capitalistas se acirraram a tal ponto que novos movimentos populares emergiram. O primeiro resultado eleitoral dessa nova tendência foi a vitória de Hugo Chávez como presidente da Venezuela, em 1998. Com o ideário do "Socialismo do século XXI", o mestiço Chávez enfrentou as elites brancas venezuelanas, enfrentou a influência norte-americana no país, enfrentou a mídia venezuelana – altamente conservadora e aliada fiel dos dois primeiros grupos –, e tem aprofundado mudanças que fazem soar novamente a voz do povo, dando moldes de democracia semi-direta ao Estado venezuelano.
A cada eleição ou plebiscito Chávez confirma o forte apoio popular de que goza, alcançando condições para radicalizar cada vez mais a entrega do país ao seu povo. A tentativa de golpe contra o presidente tantas vezes referendado pela população, em 2002, foi rechaçada com auxílio de setores do exército aliados a Chávez e com participação sine qua non do povo venezuelano, que foi às ruas exigir a volta de seu presidente. Os protestos que devolveram a normalidade democrática ao país foram resultado de uma prática desenvolvida por Chávez em cada medida de seu governo: a politização do povo, que, consciente da exploração que sofre, rebela-se em defesa de seus direitos. Um governo verdadeiramente popular não pode manter-se sem que o povo seja politizado, sem que se tenha como preceito básico o trabalho de emancipação e sujeitização das pessoas, transformando-se a massa inerte em povo. Foi essa emancipação que fez com que as pessoas saíssem de suas casas, armadas da Constituição feita por elas próprias, para exigir a volta do líder que escolheram para sua revolução.
Em um dos países latino-americanos com maior instabilidade política, Evo Morales chegou à presidência em 2005, tendo assumido no ano seguinte. Primeiro presidente indígena de uma Bolívia predominantemente indígena, Morales tem implantado mudanças menos radicais se comparadas às venezuelanas, mas a ideia de governo popular está presente também ali. Na Bolívia, a complexidade das relações político-sociais é ainda maior. Duas questões relativamente estranhas aos brasileiros, por exemplo, são fundamentais para a compreensão do processo boliviano: as diferenças étnicas – que por séculos fizeram com que os índios fossem escravizados formal ou informalmente pelas elites brancas e internacionais – e a busca por autonomia nos departamentos. A unidade da nação boliviana é muito tênue, e, nos últimos anos, as elites alijadas do poder por Morales e seu governo popular têm se valido das diferenças regionais para tentar enfraquecer o poder central. Mesmo assim, Evo Morales vem conseguindo aplicar mudanças profundas no sentido de dar ao povo autonomia e ao país independência. A nova Constituição, por exemplo, foi referendada pela população, e uma das decisões tomadas pelo povo soberano da Bolívia foi nacionalizar todos os recursos naturais, o que, pelo potencial do país, confere um novo impulso no caminho à verdadeira independência boliviana.
Rafael Correa no Equador, Daniel Ortega na Nicarágua, Néstor e Cristina Kirchner na Argentina, Lula da Silva e Dilma Rousseff no Brasil, José Mujica no Uruguai, Fernando Lugo no Paraguai. Além de Fidel e Raul Castro em Cuba. O espectro da esquerda e centro-esquerda independentista se amplia na América Latina, apesar de ainda existirem focos da tutela norte-americana, sendo a Colômbia o caso mais marcante, mas entrando também nessa lógica o governo golpista de Honduras, que derrubou o presidente eleito Manuel Zelaya.
É claro que em cada país há um contexto diferenciado. Revoluções não podem ser exportadas, mas a mudança em andamento nos países vizinhos faz com que o povo de cada nação se veja ali espelhado e, a partir da percepção de que a voz de seus semelhantes começa a ganhar volume, percebe que também tem esse direito, percebe que, ainda que tenha sido alijado das decisões por toda a vida, essa situação não é uma determinação histórica, mas uma construção. Percebe que não há situações imutáveis, percebe que pode também ser sujeito de sua história, ser sujeito da vida de seu país, ser sujeito da própria vida. E percebe que, adaptando a realidade revolucionária dos vizinhos à sua própria realidade, essa mudança é possível. É dessa forma que a independência latino-americana pode avançar.
É preciso, porém, que a informação sobre o que acontece nos países vizinhos chegue ao povo de forma honesta, e é claro que a mídia hegemônica não colabora para isso em nenhum dos países do continente. Ligada ao capital internacional ou às elites nacionais, a chamada "grande mídia" tem aversão por povo e por governos populares que possam contrariar seu domínio. A democratização da comunicação já dá passos importantes na Venezuela e na Argentina, e é um passo impreterível para que a verdadeira democracia impere. Fazer com que a informação chegue à população é, portanto, uma missão fundamental para quem deseja participar dessa mudança. A conscientização é o único caminho para a chegada do povo ao poder.
Paulo Freire dizia que a educação não é depósito de conteúdos, mas construção para conscientização, e que a conscientização, em uma sociedade política, é necessariamente politização. O povo politizado é, portanto, condição básica para que o processo revolucionário se estabeleça. No caso de Cuba, por exemplo, essa conscientização foi sendo aprofundada com a guerrilha na Sierra Maestra, através do diálogo com os camponeses. Porém, ao entendermos que no atual contexto latino-americano a revolução armada é uma alternativa distante – além de ser obviamente e conceitualmente menos indicada do que uma revolução pelo voto – é preciso perceber que a conscientização precisa ser iniciada e fortalecida em um momento pré.
Che acreditava na luta armada como forma mais indicada de fazer-se uma revolução, mas duvidava do potencial real de uma guerrilha urbana – e a urbanização é hoje uma realidade na maior parte do território da América Latina. Além disso, entendia como um caminho no mínimo questionável tentar derrubar um governo eleito pelo voto. Contrariando estas ideias, Chávez tentou tomar o poder pelas armas em 1992, e foi fracassado. Voltando ao embate eleitoral, venceu não apenas para o povo, mas com o povo. Para Paulo Freire, essa é uma diferença fundamental. Seu conceito de populismo, por exemplo, define como populista um líder que faça a mediação entre as massas e as elites – o que definitivamente não é o caso de Chávez. Para o pensador brasileiro, mesmo o líder populista pode tornar-se uma verdadeira liderança revolucionária ao tomar medidas para dar autonomia ao povo e estimular sua organização própria. Seria o caso dos últimos anos do governo de Vargas no Brasil, por exemplo, quando estimulou o fortalecimento dos trabalhadores através dos sindicatos. Esse caminho ainda precisa ser trilhado por alguns governos da centro-esquerda latino-americana, por exemplo o brasileiro.
Em uma entrevista concedida a Boris Muñoz, publicada na revista El Mal Pensante em dezembro de 2010, Noam Chomsky afirma que a América Latina "começou a emergir de uma história muito dura para um estágio no qual tem algumas possibilidades. (...) Nos últimos duzentos anos, a América Latina tratou muitas vezes de ir em frente, porém não pôde fazê-lo devido a três problemas. Primeiro: pela falta de integração entre os países (...), porque os países têm estado orientados para poderes imperiais quase em todo sentido, desde os bancos em que as pessoas invertem seu dinheiro até as universidades às quais enviam seus filhos. Tal dependência se está deixando para trás e tem sido adotadas medidas firmes em favor da integração (...). O segundo problema é interno. Todos os países da América Latina têm uma estrutura social horrenda, na qual há um pequeno setor da população, majoritariamente branco, que é extremamente rico e está circundado por uma enorme miséria. Isso não tem sido solucionado, porém agora pelo menos é tomado em conta. Os programas sociais de Lula da Silva não são a solução, porém são um avanço. O mesmo sucede com as missões na Venezuela. (...) O terceiro ponto é o surgimento dos movimentos indígenas. (...) Outro elemento fundamental é que há uma relação Sul-Sul que antes não existia. Como prova, a China é hoje um dos maiores inversores na região, superando, em lugares ricos em recursos, os Estados Unidos. Se examinares em retrospectiva a política exterior dos Estados Unidos, verás que o controle da América Latina tem sido quase um dogma".
De qualquer forma, a união entre os países da América Latina que têm se comprometido com o anti-imperialismo é necessária para fortalecer essa luta. Acordos de ajuda mútua têm se tornado constantes desde o início dessa guinada à esquerda no continente. Está sendo ampliada a consciência de que, para dar autonomia aos povos de cada país, é necessário tornar cada país independente, e de que essa independência, por outro lado, só pode ser alcançada através de um trabalho coletivo entre as nações, baseado na solidariedade e nas demandas conjuntas, respeitadas as particularidades nacionais.
Nesse novo contexto, o que era percebido por Che há meio século volta a ganhar ares de realidade. Em 1961, no Uruguai, o argentino falou sobre a possibilidade de novas revoluções socialistas na América Latina: "Aumentarão, simplesmente porque são o produto das contradições entre um regime social que chegou ao fim da sua existência e do povo que chegou ao fim da sua paciência". No ano seguinte, escreveu: "Uma nova consciência está se expandindo pela América (...) a certeza da possibilidade de mudança. Os facões estão afiados".
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