"A barbárie não é natural e nem inevitável"


Para o deputado estadual e ativista de direitos humanos, Marcelo Freixo, falta vontade política do Estado em lidar com o tráfico de armas

Bruna Cavalcanti
Presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio, o deputado Marcelo Freixo (Psol) é hoje um dos maiores especialistas brasileiros em violência urbana. Reconhecido por seu trabalho como parlamentar - em 2008 presidiu a CPI das milícias e revelou ao Brasil um esquema sujo dominado por policiais e ex-policiais dentro das favelas – Freixo é militante e ativista de direitos humanos há 25 anos. Já deu aula de história e alfabetizou adultos dentro dos presídios, além de ter negociado, junto com o Bope, diversas rebeliões nas cadeias. Esse ano foi reeleito com uma votação expressiva de 177 mil votos, que o consagrou como o segundo deputado estadual mais votado do Rio. Tanta história serviu como inspiração para o personagem Fraga, do filme “Tropa de Elite 2”, que assim como ele também luta por uma segurança pública calcada na garantia dos direitos humanos constitucionais. Em entrevista à ISTOÉ, Freixo falou sobre os graves e atuais problemas de violência enfrentados pelo Estado. Contou ainda como é conviver sob ameaça de morte constante e com escolta policial 24 horas por dia.
- Porque é tão difícil combater a violência no Rio de Janeiro?
O que diferencia fundamentalmente a violência no Rio de Janeiro de outras cidades como Recife, Vitória e Salvador é a questão das armas. Não é o tráfico de drogas, que tem em todo lugar do Brasil e em vários países no mundo, nem a criminalidade ou o número de mortos. Mexer no tráfico de armas significa mexer com poderes fortes e importantes da sociedade. Se o Estado quiser enfrentar isso verdadeiramente terá que tirar boa parte das intervenções policiais da favela e levar para Baía de Guanabara. As favelas não produzem as armas. Quem entra com essas armas? Quem lucra com isso? Quem vende? É fundamental para a resposta dessas questões investir no setor de inteligência da polícia e ir para o andar de cima. Talvez, o dinheiro do tráfico de armas não esteja em um barraco e sim na bolsa de valores, na especulação imobiliária e em outros mecanismos financeiros legais e mais sofisticados. Mas, para tudo isso, tem que ter vontade política. E é o que falta.
- Há solução para a violência?
Essa barbárie não é natural e nem inevitável. É possível ser mudada com investimentos em políticas públicas e com a construção da garantia de direitos. Não é possível que, com mais de 200 mil moradores no Complexo do Alemão, existam só duas escolas públicas funcionando de forma precária. Isso também é uma forma de violência. Precisamos ter uma reforma profunda na polícia e na concepção de segurança pública. É preciso ainda debater o conceito de cidades, dando outra perspectiva às favelas. As favelas têm que parar de ser o espaço para a produção do medo. Elas produzem alegria, trabalho e pessoas com dignidade. Menos de 1% dos moradores de qualquer favela se envolvem em delitos. Quem dera fosse menos de 1%, o percentual de parlamentares ou de juízes envolvidos com o crime. Temos que rediscutir a nossa idéia do papel desses setores pobres da população. Essas pessoas varrem nossas ruas, passam as nossas roupas, fazem as nossas comidas e mesmo assim nós os tememos.
- A polícia carioca está entre as que mais mata e mais morre no mundo. Por quê?
A nossa polícia historicamente serve a uma elite política. Ela foi construída assim: barata e violenta porque serve para manutenção da relação do Estado com esses territórios desassistidos de direitos. Como a nossa elite política é clientelista e corrupta, ela precisa de uma polícia assim. Essa relação faz nascer à milícia no Rio. As milícias são fruto desse papel histórico que foi atribuído à polícia frente às populações mais pobres. Boa parte da zona oeste e da zona norte da cidade são hoje controladas por esses grupos. É o nosso instrumento de apartheid.
- O senhor foi líder de uma CPI na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Que impacto teve esse trabalho?
Quase todos os líderes importantes foram presos com a CPI das Milícias, incluindo um deputado e um vereador. Esses grupos perderam poder político, mas não perderam poder econômico ou territorial. Suas áreas continuam crescendo. Eles dominam os serviços de transportes, gás, fornecimento de água, energia elétrica e tevês a cabo clandestinas. São muito parecidos com as máfias. E, se não forem derrotadas economicamente e enfrentadas agora, continuarão crescendo. Hoje, a nossa grande briga é para que as 58 propostas concretas, apresentadas no relatório final da CPI, sejam adotadas. É preciso regulamentar o transporte alternativo, desmilitarizar os bombeiros e tipificar o crime de milícia. Não sei ainda quem será o próximo ministro da Justiça, mas iremos a ele, seja ele quem for, debater a necessidade do novo governo priorizar o enfrentamento a esses grupos paramilitares. Os caminhos estão dados e as medidas para além da polícia também precisam ser tomadas.
- Porque essas propostas ainda não foram adotadas?
Porque no fundo essa relação de Estado/Território com as milícias garante um poder muito forte a determinados segmentos da sociedade. São muitos os setores da política do Rio de Janeiro que se elegem nesses lugares, através de acordos pouco republicanos. Enfrentar esse tipo de coisa vai trazer prejuízo político para setores importantes aqui.
- Qual é a relação entre as milícias e a polícia militar e a civil?
As milícias nascem dentro dos setores da segurança pública. Quando investigamos esses grupos em 2008, não havia uma só milícia em que a sua chefia não fosse comandada por algum membro da segurança pública do Rio, como agentes penitenciários, bombeiros, policiais ou ex-policiais, civil ou militar. É um crime organizado dentro do Estado. Não é paralelo, não está fora. E, como eles acabam dominando territórios e votos, conseguem uma penetração muito maior do que só através da sua corporação. Muitas vezes, eles serviam como importantes cabos eleitorais de segmentos políticos da sociedade e ganhavam em troca indicações de delegacias, escolas e hospitais. Crime, polícia e política se misturaram de uma maneira perigosa. Mas, dentro da polícia há também muita resistência à milícia
- Qual a relação entre a milícia e o tráfico?
O miliciano não se vê e nem se vende como bandido. Ele trabalha muito com a questão da ordem, usa a concepção do enfrentamento ao tráfico, da idéia de justiceiro. Já o tráfico é marcado pela barbárie e é muito menos organizado. Os milicianos são agentes públicos.
- Qual é a sua avaliação sobre a Unidade de Polícia Pacificadora, as UPPs?
Eu defendo o principio do policiamento comunitário e a aproximação da policia com a comunidade. Mas acho que as UPPs não são um debate só da segurança pública. É claro que há avanços inegáveis e eles têm de ser garantidos. No entanto, as UPP nos levam a outro debate que ainda não foi aprofundado: as escolhas dos lugares em que serão implantadas. Todas as áreas das UPPs, como a zona portuária do Rio de Janeiro, o corredor hoteleiro da zona sul e o entorno do Maracanã, são localidades estratégicas para o investimento de capital privado para a cidade olímpica. Isso não tira o mérito que elas trazem para os moradores dentro da favela. No entanto, as UPPs só podem ser entendidas junto com uma leitura sobre o efeito das barreiras acústicas, que são barreiras muito mais para os olhos do que para os ouvidos. Visitei recentemente o chapéu Mangueira e a Babilônia, que já é área de UPP há um ano e meio. Lá, não há mais tiroteio e nem a presença do tráfico, o que acho ótimo, mas também não existe recolhimento do lixo, médico no posto de saúde e a creche funciona de forma precária. Não há outro braço do Estado, em boa parte dessas áreas de UPP, sem ser o braço armado da polícia.
- O senhor declarou que as UPPs não chegam às milícias. Por quê?
Porque nesse projeto de cidades, nas quais estão instituídas as UPPs, as milícias não incomodem tanto quanto o varejo das drogas. Espero que não seja isso. No entanto, não entendo porque tem UPP em Jacarepaguá, na cidade de Deus, mas não em Rio das Pedras ou no bairro da Gardênia Azul, que são lugares tão importantes para as milícias.
- Se a milícia tira o tráfico de drogas de uma comunidade por que a polícia militar não faz isso?
A hora que a polícia quiser tirar qualquer grupo de varejo da droga ela tira de onde for. Em 2007, a polícia entrou no mesmo complexo do alemão e matou 19 pessoas, saindo no dia seguinte. Na semana passada, teve que voltar lá. A polícia não tem nenhum impedimento, no que diz respeito a sua capacidade de intervenção, de entrar em qualquer lugar do Rio de Janeiro. Eles possuem armamento e capacidade militar para isso. O debate não é policial e sim é sobre a relação Estado, Território e Governança, que deve ser feito além da polícia. A soberania de um lugar não pode ser garantida exclusivamente pelos policiais, até porque você não terá policiamento para garantir isso em todos os lugares. É necessário o desenvolvimento de outros mecanismos de soberania para isso. Mecanismos com a maior participação das pessoas, aumento no grau de cidadania e nas garantias de direito para reduzir os espaços do crime.
- É possível assegurar que uma favela foi realmente pacificada?
A concepção de um lugar pacificado é uma utopia. Todo mundo quer a paz. Até mesmo algumas facções criminosas têm a palavra em seus dizeres. Porém, esse debate tem que ser feito a luz das políticas públicas. Muitas vezes, um tanque de guerra numa esquina traz uma sensação de segurança que não pode ser confundida com a paz. Uma sociedade pacificada se desenvolve calcada na garantia de direitos. A idéia de ter muita polícia nas ruas como modelo de segurança é estranha. Uma sociedade que precisa ter muita polícia nas ruas é tudo, menos segura.
- O senhor tem mais medo do policial corrupto ou do bandido?
O medo nos carrega para todos os lados. Conheço muitos policiais honrados, honestos e também muitos presos que são mais vítimas que criminosos. No Brasil, há muitas pessoas nas cadeias que cometeram crimes leves, como furto de celular. Mas, conheço também detentos violentos e policiais corruptos. O medo que a gente tem não pode ser de uma corporação ou de um presídio. Não se trata de confiar mais em um ou outro. E sim, de debater com muito mais profundidade qual é a polícia que querermos ter, quanto ela vai receber, como vai ser treinada e a que concepção de cidade vai servir. Precisamos ainda discutir com mais sagacidade o papel do sistema prisional.
- E qual é esse papel?
Nós vivemos uma esquizofrenia penal. O crescimento da população carcerária no Brasil é impressionante, maior até que o crescimento da população brasileira. Isso se dá fundamentalmente depois da década de 90. E, o perfil desses presos, no Rio de Janeiro, segue o mesmo padrão: jovens, pobres, negros e com baixa escolaridade. São prisões da miséria, que detém quem sobra de uma sociedade de mercado e atendem a uma lógica de segurança que é a da criminalização da pobreza. São lugares muito caros e que tornam as pessoas piores.
- Qual a avaliação que o senhor faz do governo Sérgio Cabral e da gestão do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame?
Eu sou oposição política ao governador. No entanto, no debate da Segurança Pública não gosto de me posicionar como situação ou oposição. A nossa responsabilidade com a sociedade está acima dessas diferenças políticas. Por isso, eu fico muito mais confortável em falar do Beltrame que do Sérgio Cabral. O Beltrame leva uma grande vantagem porque sua honestidade o faz uma pessoa muito melhor do que os últimos secretários que existiram antes dele. Tenho uma relação muito sincera com ele. Com divergências, mas muito respeito.
- Qual o impacto da violência carioca na imagem do Rio de Janeiro no exterior?
O choque é inevitável. Eu acho que uma foto da Vila Cruzeiro, ocupada por quem quer que seja, não é um retrato bom para nenhuma cidade. As imagens são ruins mesmo a polícia sendo vitoriosa, ocupando territórios e sendo aplaudida pela população. São lugares sem nenhuma assistência, com poucas escolas e casas muito pobres. O Rio tem coisas muito boas e tem também graves problemas, como todas as cidades do mundo. Em um momento como esse, as nossas dificuldades aparecem. Agora elas precisam ser tratadas com uma profundidade maior que uma crise emergencial como essa, às vezes, permite.
- Sua história de vida, como ativista de direitos humanos e deputado estadual, inspirou o personagem Fraga, de “Tropa de Elite 2”. O que o senhor achou do filme?
É extraordinário e muito melhor do que o primeiro. Ele joga os problemas da segurança pública para o andar de cima e une duas coisas importantes, como o entretenimento com compromisso. Permite um excelente debate e pode gerar atitudes que a sociedade está precisando, além de quebrar silêncios.
- O que é ficção e o que é realidade nas cenas que foram retratadas?
O filme se aproxima bastante da realidade. Discutimos muito o roteiro com a produção e todo o elenco. Eles tiveram acesso ao relatório da CPI das Milícias e o que está retratado lá condiz bastante com o que realmente acontece. Já a minha vida pessoal foi mostrada com bastante ficção. Minha mulher nunca foi casada com o capitão do Bope e a cena da rebelião também é um pouco distorcida da realidade. Já negociei dezenas de rebeliões com o Bope e eles nunca entraram atirando em alguém.
- Como é viver escoltado 24 horas por dia com seguranças, sob ameaça de morte?
É muito ruim, mas não é uma escolha. A escolha é fazer o que faço. A partir disso, a escolta é uma necessidade. Milito pelos direitos humanos há 25 anos. Tenho mais tempo como militante do que como não militante. Não tenho mais como não fazer isso. Me tornei deputado para defender essas causas. Isso tem uma conseqüência e sabia disso desde o principio. É tentar adaptar a vida a isso. Particularmente é muito ruim porque você sacrifica não só a sua vida como a de toda a sua família. Na semana passada, recebi uma ameaça de morte que foi denunciada através do disque-denúncia. Essas coisas vão te corrompendo. Você não fica indiferente a isso. Ter uma escolta quebra a naturalidade da vida, o improviso.
- Como é ter que lidar todos os dias com um assunto tão pesado como a violência? Considera-se uma pessoa leve?
Na medida do possível, me considero uma pessoa leve. Carrego uma necessidade muito grande do sorriso. Não posso perder isso nunca. Na hora em que eu perder a vontade de viver que é movida pela minha alegria de viver, é porque eu perdi a batalha. Mas, em momentos como esse do Rio de Janeiro, é difícil sorrir e até mesmo dormir. Só que a vida não pode ser levada com amargura por mais difícil que seja.

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