A luta vitoriosa de sem terra gauchos por um pedaço de chão


Os agricultores do Assentamento Apolônio de Carvalho, em Eldorado do Sul, dão exemplo de lavoura coletiva no cultivo de arroz orgânico em terreno que pertencia ao traficante colombiano Abadía. Por Igor Natusch. Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Para muitos, um pedaço de terra é mais do que uma conquista: é uma luta que nunca se encerra. Depois das longas marchas, das ocupações e da espera pela desapropriação, vem outra etapa para aqueles que, até este momento, chamávamos de sem terra. Com poucos recursos, muitas vezes sem conhecer bem o chão onde construirão os alicerces de seu futuro, resta a centenas de famílias o esforço para tirar do solo o que dele se espera. O assentamento, longe de ser o final de uma saga, é apenas o começo de um novo e longo episódio.
Desde os três anos de idade, Jaqueline Nunes conhece como poucos os caminhos poeirentos da luta por um pedaço de chão. Vinda de uma família de pequenos agricultores, Jaqueline foi criada em meio a barracas, nos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), espalhados pelo interior do Rio Grande do Sul. Debaixo de uma lona, encarou durante anos o calor do verão e as chuvas geladas do inverno. Aos 18 anos, decidiu sair do assentamento onde morava com a família, em Nova Santa Rita, para construir a própria história. Foram mais 3 anos e 9 meses em meio à escassez, buscando por um lugar onde cultivar uma nova vida.
Desde 2007, Jaqueline faz parte das 72 famílias que vivem no Assentamento Apolônio de Carvalho, em Eldorado do Sul (RS). Dessas, 53 se dedicam atualmente ao cultivo de arroz orgânico, em uma área que se estende por 534 hectares. “O orgânico para mim é mais natural, porque eu sempre estive no meio disso”, conta Jaqueline, que também atua como coordenadora regional do MST. Seu pai, assentado em Nova Santa Rita, foi um dos primeiros agricultores ligados ao movimento a cultivar verduras ecológicas. Atualmente, vende seus produtos em Porto Alegre, em uma feira promovida pelo Incra.
Segundo dados do Incra/RS, a área de cultivo de arroz agroecológico no RS alcançou 3,8 mil hectares em 2011, superando os 2,1 mil do ano passado. O número de famílias envolvidas com o cultivo, feito sem aditivos químicos, também aumentou: de 211 famílias em 2010, agora são 428. Os produtores vivem em 16 assentamentos, espalhados por 11 municípios. A maioria deles ligados à reforma agrária. Realidade na qual o assentamento onde Jaqueline mora se insere, de forma oficial, pela primeira vez.
O Assentamento Apolônio de Carvalho foi escolhido pelo governo gaúcho para a inauguração da oitava colheita de arroz orgânico de 2011. O lançamento aconteceu no dia 17 de março, com a presença do governador Tarso Genro e de secretários estaduais. Depois da festa, da visita dos engravatados e do governador chegando de helicóptero, ficou o trabalho para fazer. E as perspectivas são boas. Em alguns pontos, os assentados estimam mais de 120 sacos de arroz por hectare — uma média maior do que a das fazendas das redondezas, que cultivam o cereal de forma convencional, com uso de aditivos químicos. “Eles ficam falando ‘poxa, nós plantamos arroz convencional e colhemos 80 ou 90 sacos por hectare. Como é que eles conseguem?’”, diz Jaqueline.
A maioria das famílias, segundo Jaqueline, tinha a ideia inicial de trabalhar com leite. Mas as condições do terreno inviabilizaram o projeto e forçaram os assentados a uma mudança de rota. “A nossa terra aqui só dá mesmo para arroz”, afirma Josino de Jesus, outro agricultor que encontrou no Apolônio de Carvalho a chance de controlar o próprio destino. “O terreno é muito molhado, não dá para cultivar plantas secas”. Jaqueline explica que algumas famílias, pela falta de experiência, tiveram resistência em plantar o orgânico. “É uma cultura meio arriscada, porque é muito investimento. Se der um erro humano perde a produção e fica endividado para o resto da vida”.
Uma das formas de contornar essa inexperiência é a parceria estabelecida com agricultores de Tapes, já acostumados a lidar com o cultivo de arroz. É uma troca simples: os assentados de Eldorado do Sul entram com a terra, e Tapes empresta os tratores, fundamentais para a colheita. Além disso, a troca de experiências é valiosa para os iniciantes no cultivo de arroz agroecológico. “Nossa ideia é ir aprendendo, adquirindo equipamento e nos tornando cada vez mais autônomos”, explica Jaqueline.

“Por que tu não acampa e pega um pedaço de terra?”

Josino de Jesus nasceu em Caçapava do Sul, filho de agricultores. A decisão de lutar por um pedaço de chão, porém, surgiu em Porto Alegre. “Vim trabalhar com um doutor aqui em Porto Alegre, e tinha um acampamento perto de onde eu trabalhava. E aí esse doutor me disse: por que tu não vai acampar lá com eles e pegar um pedaço de terra?” Jesus, como é conhecido no assentamento, achou que era uma boa ideia, e juntou-se ao acampamento. “Foi ele quem me levou lá, inclusive. Faz uns 7 anos”.
Hoje em dia, Jesus cuida não só da plantação de arroz, mas também de uma das hortas que diversificam a produção do assentamento. “Já entreguei aipim, milho verde, abóbora”, lista ele. As hortas ajudam, também, a aproximar o assentamento de um equilíbrio autossustentável. “Algumas famílias buscam alternativas”, explica Jaqueline Nunes. “Arroz é uma vez por ano. Dá para fazer até 7 mil reais de renda por ano, mas se a gente fizer essa divisão por mês, vai dar uns 400 ou 500 reais, às vezes menos que um salário mínimo. Tem muitas famílias, como a do Jesus, vendo essa questão de horta. A horta já é uma renda mensal que ele vai ter. Tem famílias que estão fazendo queijo. Já são outras rendas, mesmo que a gente saiba que a renda maior é mesmo a do arroz”.
Para ampliar a capacidade produtiva, a solução é contar com fomentos do Incra. O assentamento já conseguiu duas parcelas de recursos junto ao órgão, e atualmente pleiteia uma terceira. Além disso, os trabalhadores rurais contam com fundos de investimento do Pronaf. Os assentados assentados podem investir estes recursos em equipamentos para plantio e colheita, além de melhorias úteis para o seu dia a dia. Existem também planos para empreendimentos coletivos, como a construção de um silo.
“Podemos formar grupos de cinco ou seis famílias para adquirir um trator, para grades, esses implementos maiores”, comenta Jaqueline. “A família pode optar. Se ela diz que vai ficar no arroz, tem como investir em trator, comprar os implementos todos. Outros optam por trabalhar com leite, mas para nós aqui é bem mais complicado, por causa das características do terreno. Provavelmente 90% das famílias vão ficar no arroz mesmo”.

Terreno pertencia a traficante internacional de drogas

A terra que hoje fornece alimento para a merenda escolar de milhares de estudantes em todo o Brasil já foi utilizada para propósitos bem menos nobres. Mais precisamente aos negócios escusos do traficante internacional Juan Carlos Ramirez Abadía. O terreno era parte das quase infidáveis posses do colombiano Abadía no Brasil, mas não era usado para o cultivo ou produção de drogas. Era, isso sim, um gigantesco haras, no qual o traficante criava cerca de 15 cavalos de raça. “Os cavalos eram criados à base de chocolate. Chocolate mesmo, alfafa e chocolate!”, admira-se Jaqueline.
Muito bem alimentados de cacau, os cavalos descansavam em grandes baias, enquanto o proprietário do terreno pensava em investimentos ainda mais altos. A ideia de Abadia, segundo os atuais moradores do assentamento, era construir no local uma das maiores arenas de rodeio da América Latina. No entanto, a Justiça alcançou Abadía antes que as obras tivessem início, e frustrou os planos empreendedores do traficante internacional.
As origens pouco nobres da terra acabaram sendo positivas para o MST na luta pelo apoio da comunidade. O que não quer dizer que o assentamento tenha acontecido sem sobressaltos. “Foi uma ocupação que durou bastante tempo”, explica Jaqueline. Durante 58 dias, os trabalhadores rurais ficaram no terreno, esperando uma definição, sem aceitar os argumentos usados para convencê-los a sair. “Eles (governo) não tinham argumentos para as famílias”, diz Jaqueline. “Nosso argumento era de que queríamos produzir, e eles não tinham elementos para nos contestar, porque era terra de traficante, de lavagem de dinheiro. Mas acabou sendo bom, porque a sociedade ficou do nosso lado. Conseguimos fazer esse diálogo”.

Mãe de Jaqueline foi presa no confronto da Praça da Matriz

A mãe de Jaqueline Nunes, Elenir, foi uma das pessoas presas após o tristemente notório incidente na Praça da Matriz, em 1990, quando uma violenta tentativa de dispersar agricultores resultou na morte de Valdeci de Abreu Lopes, cabo da Brigada Militar. O fato marcou o MST, que a partir dali passou a ser visto por muitos como uma organização criminosa — imagem que, para vários setores, segue intocada. “Foi uma coisa que marcou muito”, admite Jaqueline, em um dos poucos momentos em que seu olhar desvia do interlocutor e volta-se para o vazio.
Sete pessoas foram presas pela morte de Valdeci. Durante anos, a versão oficial foi de que, agredido por uma foice, o cabo teria atirado a esmo uma ou duas vezes antes de tombar morto. Mais tarde, os autos do processo relevaram outra versão: a de que o golpe fatal teria sido provavelmente uma atitude de defesa, após os disparos, já que uma pessoa golpeada na artéria carótida perde os sentidos quase que imediatamente.
Dos sete presos, a mãe de Jaqueline foi a única mulher. Aparentemente, nenhum dos que assumiram a responsabilidade estava de fato envolvido no crime. Ao levarem a culpa pela morte do policial militar, eles seguiram o princípio do MST de não personalizar ações. Elenir Nunes foi uma das pessoas baleadas por Valdeci — vítima dos tiros, acabou transformada pelo inquérito em culpada de assassinato.
O confronto na Praça da Matriz acabou marcando decisivamente a relação entre Jaqueline Nunes e a mãe. A filha evita detalhes, não se aprofunda na história, mas admite que pouco viu Elenir nos anos de prisão e que passou a ser filha de “duas famílias”. Hoje, ela tem uma terceira família: a própria. Seu marido trabalha longe, voltando apenas nos finais de semana; seu filho passa a maior parte do tempo na escola ou sob os cuidados da madrinha. Enquanto isso, Jaqueline trabalha em nome do MST, ajudando outras famílias a colocar um fim na caminhada em busca de terra.

“Diziam que eu ia chegar aqui para plantar sapo”

“Chega de caminhar”, disse Doroti Carpes, após anos de marchas e acampamentos. Ela e o marido participaram da marcha até São Gabriel, que cruzou o Rio Grande do Sul em 2003, e permaneceram durante três anos e meio em um pré-assentamento em São Borja. “Era marcha e marcha, luta e luta. A gente parava de caminhar já de noite; os pés ficavam inchados”, conta ela. Depois de tanto andar, Doroti resolveu abraçar a chance e vir até Eldorado do Sul. “Diziam para mim: mas tu vai para lá para plantar sapo!  E eu disse que não tinha problema: vou plantar sapo se precisar”, lembra, rindo.
Chegando ao assentamento, a água acabou se mostrando, de fato, um problema. Devido ao solo úmido do banhado, demorou muito tempo até que se encontrasse o lugar mais adequado para levantar as casas. “A gente levantava um barraquinho, dava uma chuva e já alagava tudo”, lembra Doroti. Jaqueline explica que, no início, a divisão por lotes não levava em conta as áreas secas, e as casas se espalhavam de forma desigual pelo assentamento. Depois de um tempo, os assentados e o Incra chegaram a uma conclusão: era impossível levantar casas em determinados pontos do terreno. Atualmente, as casas são erguidas em trechos específicos, próximas umas das outras. “São áreas que não alagam” explica ela. “A limpeza dos valos e a criação de canais acabaram drenando bastante, por isso é seco… Antes, qualquer chuva e era água pelo joelho, em qualquer lugar”.
Vinda da região norte do estado, Marli Malinoski chegou ao assentamento mais de um ano depois da primeira divisão dos lotes. Esteve no Rio de Janeiro, fazendo parte de um projeto chamado “solidariedade e formação nas áreas de reforma agrária”. Embora estivesse concorrendo a outras áreas mais próximas de onde moram seus familiares, Marli acabou sendo chamada para o Apolônio de Carvalho, e resolveu não deixar a chance passar. No momento, ela é uma das poucas pessoas a morar sozinha no assentamento.
No momento, existem cinco lotes ainda não ocupados no Apolônio de Carvalho. Geralmente, o MST tem seus próprios critérios para definir quem vai ganhar a terra — participação nas marchas e ocupações, tempo de acampamento, situação familiar. Porém, o Incra resolveu criar regras para disciplinar essa escolha. Regras que não parecem agradar muito os moradores do assentamento. “Hoje, aplicam um questionário”, conta Marli Malinoski. “Querem saber se tem experiência em plantio de arroz, carteira assinada de trabalho em várzea. Quem é sem terra não tem carteira assinada, é gente que trabalhou em granja e não tem como comprovar”, reclama.

Relação com prefeitura de Eldorado do Sul é complicada

Um dos muitos desafios do dia a dia do assentamento está em conquistar, mais do que a atenção, o respeito do poder público. Pelo que se percebe nas conversas com os assentados, o diálogo com a prefeitura de Eldorado do Sul não costuma ser dos mais fáceis. Como exemplo, Jaqueline Nunes cita uma das reuniões que teve com o prefeito do município, Ernani de Freitas Gonçalves (PDT). Durante o encontro, Jaqueline teria tido que ouvir o prefeito dizer que o plantio de arroz orgânico não trazia muitas vantagens para Eldorado do Sul. “Ele disse que progresso mesmo quem trazia eram as grandes empresas, como a Dell”, revolta-se.
Para contestar essa visão, o assentamento tenta usar uma linguagem que os governos, de modo geral, entendem muito bem. “Fomos para uma reunião com o secretário de agricultura do município (Sérgio Munhoz), com a pauta de obter tubos para canalização”, conta Jaqueline. “No início, ele (secretário) ficou meio assim, não estava muito disposto a ajudar. Quando dissemos para ele que eles tinham que investir no Apolônio, que só de ICMS dá R$ 1 milhão por ano para o município, a coisa mudou. Ele arregalou os olhos e disse ‘um milhão? Vamos fazer os cálculos então’. Quando eles viram que dava retorno financeiro, mandaram 200 tubos para nós”, conta ela, sorrindo. “Antes de ver que dá retorno, eles ficam jogando a gente para lá e para cá”, continua Marli Malinoski. “Tem que falar com o prefeito, tem que falar com o secretário de Obras. É um jogo bem estranho”, completa, escolhendo as palavras.
As dificuldades com a prefeitura vão além dos investimentos materiais, estendendo-se também a aspectos menos óbvios, mas nem por isso menos perceptíveis. “O transporte de Eldorado do Sul, que leva os estudantes, não aceita transportar assentados e não faz integrado”, denuncia Marli. Tratamento bem diferente do que recebem de Charqueadas, o outro município que abriga terras do assentamento. Na cidade, administrada por Davi Gilmar de Abreu Souza (PDT), os assentados são melhor tratados, dentro da lógica econômica que move o município. “A questão de apoio a cooperativas é bem mais marcada em Charqueadas”, diz Jaqueline Nunes, que também integra a coordenação regional do MST. “Eles veem a cooperativa com outros olhos. Nosso esforço é fazer Eldorado do Sul ver a gente com esse mesmo olhar”.
Marli exemplifica. “Às vezes, a gente chega em Eldorado passando mal, precisando mesmo de atendimento (médico). Já fui duas vezes até lá, uma delas porque eu estava com um problema de coluna, e já chegavam perguntando de onde eu era. Eu respondia que era do Apolônio e diziam ‘tá, mas é do lado de Eldorado ou de Charqueadas? Porque se for de Charqueadas a gente não atende, tem que ir até lá, nós não damos cobertura para vocês’”. Do outro lado da ponte, segundo ela, o tratamento é distinto. “Tu chega lá e tem atendimento, remédios, marca exames. Ninguém te pergunta nada”, diz Marli Malinoski, lembrando também do ônibus que aparece de vez em quando, com dentista e clínico geral, para atender as famílias dentro do assentamento.

Arrendamento para “catarinas” quase põe tudo a perder

Apesar dos progressos, uma crise interna acabou dividindo os assentados e por pouco não cria sérios problemas para o Apolônio de Carvalho. Tudo começou com a proposta de agricultores de fora, chamados de “catarinas” pelos moradores do assentamento. “As famílias estavam passando necessidade, sem equipamentos para plantar, sobrevivendo com cesta básica”, explica Marli. “Daí apareceram eles, com uma mala de dinheiro, dizendo que queriam plantar arroz nas nossas terras, que nos dariam tanto por ano. Como que não vai aceitar?”
Os catarinas tornaram-se, a partir daí, arrendatários do terreno. “Para eles, era um modo de ganhar dinheiro”, afirma Jaqueline. “Não nos levavam para a plantação, não nos deram chance de aprender nada. Eles vivem de empréstimo em cima de empréstimo, não pagam imposto nenhum, plantam e colhem aqui para vender tudo lá”.
Assim que soube do arrendamento, o Incra tomou medidas duras — contra os assentados. “Todas as famílias foram notificadas, ameaçaram tirar todo mundo dos lotes”, conta Jaqueline, indignada. Os interrogatórios eram constantes, tentando determinar quais assentados teriam sido os primeiros a aceitar a proposta dos catarinas. “Começaram a jogar as famílias umas contra as outras. Diziam que um tinha falado do outro, que algumas pessoas eram ‘inadequadas para convívio social’”, acrescenta Marli, sem disfarçar a ironia na voz. “Os companheiros começaram a pensar que não era o Incra o inimigo, e sim as outras famílias. Chegou em um ponto que os vizinhos não se encontravam mais nem para tomar chimarrão”.
De acordo com Jaqueline, foi um período de estagnação para o Apolônio de Carvalho. “Não conseguíamos mais reunir as famílias para discutir melhorias. Precisávamos ir atrás de energia elétrica, de água, transporte escolar, e ninguém conseguia se organizar, porque todo mundo desconfiava de todo mundo”. Além disso, a determinação do Incra no sentido de que ninguém podia deixar os lotes enquanto durasse o inquérito aumentou ainda mais a carga de tensão. “Quem saísse, seria notificado”, lembra Marli. “Acabou ficando uma situação do tipo: se o filho tiver como ir para a escola, tudo bem, se não tiver, não vai, porque ninguém tinha disposição de ir atrás”.
O esforço, mais do que de recuperar a convivência entre as famílias, acabou sendo de reorganizar todo o assentamento. “Fomos organizando os grupos de produção, dividindo alguns lotes para produção de sementes, outros para os grãos”, conta Jaqueline. Hoje, a integrante da coordenação regional do MST comemora uma situação bem mais positiva dentro do assentamento. “Se a gente tem uma reunião para discutir alguma demanda, 90% das famílias aparecem. Naquela época, a gente não conseguia reunir cinco famílias que fossem para ir atrás de alguma coisa”, revela.

“A família que não tem um bichinho vai querer comprar uma vaca”

A situação, no momento, é inegavelmente melhor. Com esforço coletivo, o Assentamento Apolônio de Carvalho conseguiu retomar o rumo e agora investe com força crescente em uma cultura que já dá sinais de sucesso. Mas os trabalhadores sabem que ainda há bastante coisa para conquistar. “Como estamos investindo bastante, não vamos ter muito lucro agora”, admite Jaqueline Nunes. “A gente espera que nos anos seguintes, com essa estrutura que estamos montando, os custos caiam e a gente consiga investir mais nas famílias mesmo, nas casas”.
“Mesmo essas parcelas (de financiamentos do Incra) não garantem que a gente vá poder adquirir as máquinas e equipamentos que a gente precisa”, diz Marli Malinoski. “Porque a família que ainda não tem um bichinho vai querer comprar uma vaca, por exemplo. A vaca é uma garantia de leite, de sustento, é uma contribuição de proteína na alimentação. As famílias têm prioridades que são para a subsistência delas, para consumo imediato. Não tem como abrir mão disso para investir em outras coisas”.
Seja como for, o futuro dessas famílias surge mais como uma esperança do que como um ponto de interrogação. Os últimos quatro anos do Assentamento Apolônio de Carvalho são, para elas, mais um passo em uma longa jornada rumo ao próprio chão. Para muitos, distante de casa; para outros, longe do que a terra os tinha ensinado em semeaduras e colheitas anteriores. Para todos, um desafio e chance para novos começos. A colheita do arroz orgânico deve estar encerrada em duas semanas, fechando um ciclo e iniciando outro — na terra, da terra e para a terra.

0 comentário(s):

Postar um comentário

Deixe sua sugestão, crítica ou saudação juntamente com seu contato.

 

© 2009-2012 movimento contestação