Líbia entre a guerra civil e a invasão

Rebelión - [Juan García Ballesteros, Tradução de Diário Liberdade] 13 de Março. Tudo está sendo preparado. Não lhes soam os porta-vozes que clamam pela maldade de Kadafi e a intervenção imediata dos Estados Unidos na Líbia? Não recordam as maldades de Saddam Hussein e as mentiras para a invasão? Não lhes são conhecidos os argumentos de criminoso massacrando ao seu povo, referidos agora a Kadafi?

A invasão de um país soberano por forças estrangeiras é um atropelo ao direito internacional, mas se se trata dos EUA, é para ajudar a população civil, para dar-lhe apoio humanitário. Depois eles a massacram. Não lhes importa o resto do mundo, nem o direito dos povos em decidir o seu futuro. O que necessitam é convencer aos ignorantes cidadãos americanos da importância que tem para a democracia e para a população do país essa invasão. E lhes é muito fácil. Em seis meses mudaram a opinião antibélica com uma brutal propaganda cheia de mentiras e manipulações para invadir o Iraque.

Já começaram com a Líbia. Sem que se saiba o que realmente está ocorrendo, sem que tenhamos imagens de bombardeios da população, como afirmam os meios de comunicação ocidentais, sem que possamos contemplar imagens de populações devastadas e mortes pelas ruas, já estão preparando o caminho da invasão. Vejamos alguns exemplos:

  • Sem dizer nenhum nome, o locutor da CNN, Anderson Cooper, ligado a CIA, entrevista uma mulher líbia que diz viver em Trípoli e que clama pela intervenção internacional para acabar com o massacre em seu país.

  • O arquiteto da guerra do Iraque, o ex-presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz, poucos dias depois do levante na Líbia já pediu uma “zona de exclusão aérea” por parte da OTAN, o que supõe claramente uma invasão.

Os senadores John McCain e Joseph Lieberman, enquanto estavam em Tel Aviv em 25 de fevereiro, solicitaram que Washington forneça armas aos rebeldes líbios e que estabeleça uma zona de exclusão aérea sobre o país.

  • Um grupo de pressão denominado Iniciativa de Política Exterior, amalgamado dos resíduos do Projeto para um Novo Século Americano, publicou uma “carta aberta” a Obama pedindo uma intervenção militar – começando pela zona de exclusão aérea – na Líbia. O marco neoconservador para encarar a crise líbia criaria um mandato regional administrado pela OTAN por conta da “comunidade internacional”.

  • No início de março, dois dos principais órgãos de imprensa dos Estados Unidos, The New York Times e The Washington Post, apressaram-se em oferecer suas versões sobre o tema, do qual informa a agência DPA: “A oposição líbia poderia solicitar que o Ocidente bombardeasse desde o ar posições estratégicas das forças fiéis ao presidente Muammar Kadafi”. “O tema está sendo discutido no Conselho Revolucionário líbio”, especificam estes jornais em suas versões online.

The New York Times destaca que essas discussões põem em manifesto a crescente frustração dos líderes rebeldes perante a possibilidade de que Kadafi retome o poder. “No caso de que as ações aéreas se realizem no marco das Nações Unidas, estas não implicariam intervenção internacional”, explicou o porta-voz do conselho, citado por este diário.

O Wall Street Journal, voz do grande capital, escreveu em um editorial de 23 de fevereiro que “EUA e Europa deveriam ajudar os líbios a derrotar o regime de Kadafi”.

Do mesmo modo, os jornais espanhóis (ABC, El Mundo, El País, Público…) e os mais destacados jornais europeus, seguindo os slogans do império, reúnem críticas para que Kadafi deixe o poder, a favor de estabelecer uma zona de exclusão aérea ou da invasão.

O presidente da Comissão Europeia (CE), José Manuel Durão Barroso, (EFE, 2 de Março) exigiu hoje ao líder líbio, Muammar Kadafi, que escute o seu povo e deixe já o poder. “As ações completamente inaceitáveis do regime líbio deixaram dolorosamente claro que ele é parte do problema e não da solução. Temos de fazer todo o possível para que o regime atual deixe o país” e para que “cessem suas intervenções contra o povo”. Segundo Barroso, um governo que “mata sistematicamente seus cidadãos não pode continuar” no poder.

  • O presidente americano Barack Obama, desde a Casa Branca, em suas primeiras declarações em 23 de Fevereiro, sobre o conflito líbio disse que “O sofrimento e o banho de sangue é escandaloso e inaceitável. E também o são as ameaças e ordens de disparar em manifestantes pacíficos e seguir castigando ao povo da Líbia. Esses atos violam as normas internacionais e todos os padrões da decência comum. Esta violência deve terminar”, agregou.

Em 3 de Março (Agência EFE), o Presidente americano afirmou que Kadafi se encontra “no lado equivocado da História” e deve “deixar o poder e ir embora já”. Efetivou o seu chamado mais firme até agora contra ele exigindo sua renúncia diretamente em três ocasiões em menos de dez minutos durante uma roda de imprensa conjunta com o presidente mexicano, Felipe Calderón. Obama advertiu o risco de “um ponto morto que com o tempo possa converter-se em algo sangrento” na Líbia. Insistiu em que seu Governo gerencia “uma ampla gama de opções”, e não descartou a imposição de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia, ainda que não tenha dado indícios de inclinar-se pela via militar. “O que queremos é ter a capacidade de intervir potencialmente rápido se a situação se deteriorar”, indicou. A grande prioridade agora mesmo, declarou o presidente, é a ajuda humanitária.

Muitos países do mundo (China, Alemanha, Turquia...) que tinham trabalhadores na Líbia enviaram meios de transporte para retirar seus cidadãos do país, mas nenhum tentou invadir. São os países da OTAN (EUA e União Europeia) os que estão aplainando o terreno informativo para, mediante a aparência de “ajuda humanitária”, tomar o controle da Líbia.

Por isso, para que essa ajuda humanitária seja mais efetiva, EUA ordenou em 28 de fevereiro que se dirigissem ao Mediterrâneo o imenso porta-aviões USS Enterprise e o navio de ataque anfíbio USS Kearsarge, do Mar Vermelho às águas em frente à Líbia, onde se unirão ao USS Mount Whitney e a outros barcos de guerra da Sexta Frota. Itália rompeu o tratado com a Líbia de 2008, que inclui uma cláusula de não agressão e colocou à disposição dos EUA e da OTAN suas bases militares, que se converteram em áreas de encenação de uma ação bélica contra a Líbia.

Que rápido reagiu o Conselho de Segurança da ONU – sob pressão dos EUA – para que em 26 de fevereiro se impusessem sanções à Líbia. Sem saber o que estava ocorrendo – não havia constatação dos massacres imputados- já se mobilizaram a ONU e a Corte Penal Internacional. Não houve mortos contabilizados na Tunísia, no Egito, na Somália, no Barein, no Iêmen, no Omã...? Não houve um massacre israelense em 2008, em Gaza com 1.500 mortos palestinos e a Corte Penal Internacional olhou para outro lado? E no Iraque? E no Afeganistão? E na Palestina? Quantas centenas de milhares de mortos, a maioria civis, se produziram nestas guerras? Até agora nem os ditadores dos países árabes, nem os responsáveis do exército invasor ianque, nem os Presidentes Bush e Obama, nem os colaboradores necessários dos diferentes países, nem Israel com a repressão sobre os palestinos, nem o ditador Micheletti em Honduras, nem os governos da Colômbia, nem outros que poderiam citar foram levados ao Tribunal Penal Internacional. Mas todos têm algo em comum: são americanos ou seus amigos.

Vamos recordar alguns dados históricos. A revolução Líbia com Kadafi supôs uma ruptura com a monarquia. O país se converteu em uma república progressista, antiditatorial, antiimperialista, inclusive dando muito apoio material às organizações em luta na América Latina contra os ditadores. E com sua política interna, doméstica, começou a financiar a educação, inclusive para mulheres, e outras medidas progressistas em relação ao bem-estar social (saúde, educação, salários dignos...). É o país africano com o nível de vida mais alto e a maior renda per capita (12.000€). Mas a partir dos anos 90, pela forte influência de seus filhos, começou a tomar algumas medidas menos progressistas, inclusive a corrupção e a repressão começaram a estender-se no regime de Kadafi. Converteu-se em um regime ditatorial. Está claro que se deve denunciar os massacres – se é demonstrado que são certos – contra seus próprios cidadãos. Mas é o povo líbio quem deve solucionar seus conflitos sem ingerências externas muito interessadas e pouco humanitárias.

Mas como compilam Santiago Alba Rico e Alma Allende em seu artigo O que passa com a Líbia? (Rebelión, 24-2-11) os recursos energéticos fazem companheiros de cama insuspeitáveis:

“Nos últimos dez anos Kadafi foi um grande amigo da UE e dos EUA e de seus ditadores aliados na zona. Basta recordar as incendiárias declarações de apoio do Calígula líbio ao deposto Ben Ali, para cujas milícias muito provavelmente proporcionou armas e dinheiro nos dias posteriores ao 14 de janeiro. Basta recordar também a dócil colaboração de Kadafi com os EUA no marco da chamada “guerra antiterrorista”. A colaboração política foi acompanhada de estreitos vínculos econômicos com a UE, incluída Espanha: a venda de petróleo à Alemanha, Itália, França e EUA foi paralela a entrada na Líbia das grandes empresas ocidentais (a espanhola Repsol, a britânica British Petroleum, a francesa Total, a italiana ENI ou a austríaca OM), para não falar dos suculentos contratos das construtoras europeias e espanholas em Trípoli. Em 2008 a ex-secretária do Estado Condoleezza Rice deixou muito claro: “Líbia e Estados Unidos compartem interesses permanentes: a cooperação na luta contra o terrorismo, o comércio, a proliferação nuclear, África, os direitos humanos e a democracia”. Quando Kadafi visitou a França em dezembro de 2007, Ayman El-Kayman resumiu a situação em um parágrafo que reproduzo aqui: “Há quase dez anos, Kadafi deixou de ser para o Ocidente democrático um indivíduo pouco recomendável: para que o retirassem da lista americana de Estados terroristas reconheceu a responsabilidade no atentado de Lockerbie; para normalizar suas relações com o Reino Unido, deu os nomes de todos os republicanos irlandeses que haviam treinado na Líbia; para normalizá-las com os Estados Unidos, deu toda a informação que tinha sobre os líbios suspeitos de participar na jihad junto a Bin Laden e renunciou a suas “armas de destruição massiva”, além de pedir à Síria que fizesse o mesmo; para normalizar as relações com a União Europeia, transformou-se no guardião dos campos de concentração, onde estão detentos milhares de africanos que se dirigiam a Europa; para normalizar suas relações com seu sinistro vizinho Ben Ali, entregou-lhe opositores refugiados na Líbia”. O acordo Berlusconi-Kadafi de 2003 pode ler-se completo na página de Gabriele del Grande e suas consequências se resumem sucinta e dolorosamente no grito de Farah Anam, fugitiva somali dos campos da morte líbios: “Prefiro morrer no mar que regressar à Líbia”. Apesar das denúncias que falam de verdadeiras práticas de extermínio – ou precisamente por elas, que demonstram a eficácia de Kadafi como guardião da Europa a Comissão Europeia firmou em outubro uma “agenda de cooperação” para a “gestão dos fluxos migratórios” e o “controle das fronteiras”, válido até 2013 e acompanhado da entrega à Líbia de 50 milhões de euros. A relação da Europa com Kadafi beirou a submissão. Berlusconi, Sarkozy, Zapatero e Blair o receberam com abraços em 2007 e o próprio Zapatero o visitou em Trípoli em 2010.”

Não podemos esquecer que foi precisamente Aznar o primeiro mandatário ocidental que visitou a Líbia após a retirada das sanções por parte da ONU, em setembro de 2003. Na delegação espanhola viajavam Repsol e outras empresas espanholas dispostas a fazer negócios. Líbia é uma ditadura, mas tem petróleo.

Enquanto que na Tunísia e no Egito, as massas populares se levantam não somente contra a ditadura, exigindo liberdade e democracia, mas também o fazem para derrubar o sistema neoliberal repressivo que condena a imensa maioria da população à fome e à miséria. Nestes países não se conformam com derrubar o ditador, querem mudar as regras sociais para alcançar uma democracia plena e transformar o sistema econômico para conseguir uma sociedade mais justa e igualitária. No entanto, como relembra Sara Flounders em um artigo intitulado Navios de guerra próximos à Líbia: cresce o perigo de intervenção militar imperialista (Rebelión, 5-3-11 [) a origem, o desenvolvimento e as consequências são distintas. Ela toma do New York Times de 25 de fevereiro a seguinte afirmação: “Diferentemente das rebeliões jovens possibilitadas pelo Facebook, a insurreição neste caso [Líbia] foi dirigida pela população mais madura e que esteve se opondo ativamente ao regime desde já certo tempo”. O artigo descreve o contrabando de armas através da fronteira egípcia durante semanas, permitindo que a rebelião “escale rápida e violentamente em pouco mais de uma semana”. O grupo opositor que mais se cita é a Frente Nacional pela Salvação da Líbia [NFSL pelas siglas em inglês]. Sabe-se que a NFSL, fundada em 1981, é uma organização financiada pela CIA, com escritórios em Washington, D.C. Manteve uma força militar, chamada o Exército Nacional Líbio, no Egito próximo à fronteira líbia. Esta frente opositora agrupa dirigentes da antiga monarquia que querem impor o descendente do seu rei.

Está claro que na Líbia havia uma oposição armada que, aproveitando as revoluções populares nos países vizinhos e o descontentamento de muitos cidadãos líbios, levantaram-se e estão lutando contra as forças leais ao ditador Kadafi. Portanto, é uma guerra civil que pretende derrubar, com o apoio dos EUA, o governo líbio.

O que se esconde por trás de toda essa montagem pré-bélica desde o Ocidente? Como mencionamos anteriormente, a União Europeia tem fortes interesses econômicos na Líbia (recebe cerca de 85% das exportações de energia). Também Turquia, Rússia e China. Mas não os EUA. A Líbia é um país rico em petróleo e tem as maiores reservas confirmadas da África. Esteve produzindo 1,8 milhões de barris de petróleo diários – cru leve, considerado de máxima qualidade e que necessita menos refino do que a maior parte do petróleo. Líbia também tem grandes depósitos de gás natural fácil de canalizar aos mercados europeus. Ainda que tenha uma grande superfície, conta com uma pequena população (6,4 milhões de pessoas). Este país é uma torta muito apetitosa para os grandes bancos, as entidades financeiras e as corporações petroleiras americanas. Por consequência, conseguir o controle de campos petrolíferos, oleodutos, refinarias e mercados, impulsiona uma grande parte da política imperialista dos EUA. Este é o principal motivo da crescente pressão dos meios corporativos dos EUA para a “intervenção humanitária para salvar vidas”.

Manlio Dinucci, jornalista italiano que escreve para Il Manifesto da Itália, explicou em 25 de fevereiro que:

“Se se derrota Kadafi, os EUA poderiam derrubar todo o marco das relações econômicas com a Líbia e abrir o caminho para as multinacionais com base nos EUA, que até agora estão quase totalmente excluídas da exploração de reservas de energia na Líbia. Assim, EUA poderia controlar a chave das fontes de energia das que depende em grande parte Europa e que também provê a China.”

Quando os governos ocidentais se escandalizam com as barbaridades que está fazendo Kadafi com seu povo, deveriam explicar à opinião pública de seus respectivos países os benefícios que obtiveram em suas relações, sua reabilitação à comunidade internacional e a acolhida com os braços abertos e o tapete vermelho que teve Kadafi nas visitas realizadas aos mandatários ocidentais. Enalteceram sua política interior repressiva e lisonjearam suas relações internacionais. Havia grandes benefícios por meio, e isso cega qualquer crítica que pudesse molestar ao mandatário líbio. Estes países que o condenam agora o conhecem bem e foram seu suporte político e econômico nos últimos anos. Os povos europeus deveriam pedir contas aos seus governantes por este cinismo demonstrado.

Traduzido para Diário Liberdade por Gabriela Blanco

Fonte: Diário Liberdade -- http://t.co/hsBn8pa

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