A fome de lucros infla o preço da comida


Belén Carreño   
Qua, 16 de Março de 2011 14:04
Fundos de alto risco açambarcam toneladas de um produto para disparar o seu preço. Um terço dos rendimentos do Goldman Sachs procede das matérias-primas
Preço dos alimentosUm apressado moscovita cruza a Praça Vermelha ataviado com uma máscara apocalíptica. Moscovo está cercada pelo fogo provocado pelo Verão mais tórrido da história. A inclemência meteorológica não deixa apenas imagens inéditas. A maior seca em cem anos açoita o continente e leva por diante as colheitas de trigo do sul do país. O primeiro-ministro, Vladimir Putin, impõe uma medida excepcional para conter os preços: não haverá exportações de trigo até 2011.
Do outro lado do mundo, um trader (intermediário) do maior mercado de matérias primas do mundo faz os seus cálculos. A Rússia é o terceiro exportador mundial deste cereal e o Canadá, o segundo, terá uma das suas piores colheitas em três anos. A oportunidade está servida em bandeja. Em apenas dois dias (4 e 5 de Agosto), o trigo sobe 8,42% e os volumes que move chocam com os tectos impostos pela entidade reguladora para conter a especulação num mercado tão delicado. No último semestre de 2010, a subida acumulada chega a 44%. E sobe ainda.
O efeito borboleta estende-se seis meses depois ao pequeno povoado tunisino de Sidi Bou Zid. O preço da farinha, e o de outros alimentos, duplicou. A Tunísia, juntamente com o Egipto e o Iraque, é um dos principais importadores de trigo russo. O jovem Mohamed Bouazizi auto-imola-se, angustiado porque lhe foi tirado o seu negócio e não pode alimentar a sua família.
Tal como neste ciclo, particularmente hiperbólico e intenso, repetem-se a cada ano no mundo sequências de acontecimentos produzidos pela alteração dos preços dos alimentos, inflados pela acção dos grandes investidores institucionais. O desenlace destes episódios é, no melhor dos casos, uma revolta, porque na maioria das ocasiões o que se desencadeia são fomes.
«A especulação financeira produz impacto nos preços». Especialistas da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE), da FAO ou do Banco Mundial concordam neste ponto. Os especialistas destas organizações declinam falar ou preferem não ser citados quando são questionados acerca do papel dos fundos de alto risco (hedge funds), mas assumem que o seu papel é fundamental, já que amplificam os efeitos de uma má colheita ou um inesperado incremento da procura.
No entanto, quantificar no preço o impacto da especulação é quase impossível, segundo os especialistas. O Instituto para a Agricultura e a Política Comercial dos EUA (IATP) recolhe os dados de um estudo preparado por uma consultora no qual se atribui ao efeito da especulação até 31% da subida do preço do milho em Julho de 2008, a anterior bolha dos preços dos alimentos.
ACTORES
Quem o tem muito claro é o guru financeiro George Soros, que foi chamado a testemunhar perante uma Comissão do Senado estado-unidense em 2008 para explicar o papel da especulação na subida dos preços das matérias-primas. De «desestabilizador» e «daninho» chamou o magnata à entrada massiva de especuladores nas matérias-primas, apesar de continuarem a ser os seus investimentos favoritos (sobretudo ouro e crude) hoje em dia.
«Há três tipos de actores no mercado financeiro. Os intermediários de derivados, os índices que seguem matérias primas e os hedge funds. Entre 12% e 16% dos actores que influem no preço das matérias-primas não fazem comércio realmente com elas», explica um antigo intermediário do Chicago Board, o maior mercado de matérias-primas do mundo. «O volume de Chicago superou os 300.000 milhões de dólares e em três anos tem vindo a triplicar. 80% daqueles que participam neste mercado são bancos de investimento», concretiza este especialista.
Entre todos os participantes, o mais poderoso é o indestrutível (por ser um dos poucos sobreviventes da hecatombe financeira) banco de investimento Goldman Sachs, que em 2008 conseguiu um terço dos seus rendimentos netos (em torno de 1.500 milhões de dólares) graças ao seu investimento em matérias-primas. O seu índice Goldman Sachs Commodity Index passou de ter um investimento de apenas 8.000 milhões de dólares no ano 2000 a entesourar actualmente 100.000 milhões de dólares que investe contra a evolução das matérias-primas (incluído o petróleo). Só em 2010, o índice revalorizou-se 50%, com uma subida próxima de 10% em Dezembro. No que vai de ano, o ascenso já roça 14%.
Estes milhares de milhões fluindo para o investimento em matérias-primas provocam uma alta instabilidade no preço das matérias-primas.«"Quanto mais volume se negoceia, maior é a volatilidade», explica o economista da FAO Abdolreza Abbassian.
A especulação com os alimentos é tão velha como a própria agricultura, mas o seu atractivo como instrumento de lucro disparou na década passada ao ser descoberto como uma oportunidade de investimento única. A rentabilidade está assegurada porque a procura mundial, em linha com a subida da população e o maior poder aquisitivo dos países emergentes, garante o seu crescimento de forma consistente. «Não há praticamente outro produto no qual investir neste momento cuja procura real seja tão clara, isto é, que tenha tão bons fundamentos», aponta Francisco López Ollés, especialista em matérias-primas e divisas. «No final, tudo isto é resultado das operações dos bancos centrais para que haja mais liquidez nos mercados (conhecido como quantitative easing). O dinheiro tem que procurar rentabilidade em algum lado», conclui.
O director do sector financeiro do IE Business School, Manuel Romera, recorda que «de cada dez operações, nove são especulativas». No entanto, Romera aponta a que «o derivado, o produto financeiro costuma ser arrastado pelo subjacente, o produto agrícola real». Para especular no mercado das matérias-primas não é preciso ter sequer um grama real do produto que se comercializa.
O mercado padece dos mesmos defeitos reguladores que o resto da negociação de produtos financeiros derivados. As operações Over the Counter (no balcão) realizam-se sem registo electrónico, pelo que não se sabe quem vende ou quem compra no mercado. O controlo destas operações é uma das principais exigências dos especialistas internacionais.
Além disso, há um desajuste regulatório entre os EUA e a Europa que em época de mercado global não faz sentido. Assim, nos Estados Unidos, que tem a sua própria Comissão para regular o mercado das matérias-primas, foram colocados limites aos volumes e margem de flutuação dos preços sobre os alimentos, para que não se possa alterar o preço real da mercadoria. Na Europa, não existem essas barreiras em determinadas matérias, como o açúcar, o café e o cacau. A FAO detectou que, para se aproveitar disso, são enviados carregamentos inteiros deste produto desde Nova Iorque, até Amsterdão, Antuérpia ou Hamburgo, para que se possa negociar ali com eles sem limite.
Embora a supervisão para um maior controlo esteja em marcha (Londres, outro dos maiores mercados do mundo, prometeu tê-la preparada em 2012), o lóbi dos bancos de investimento e dos grandes intermediários agrícolas está a pressionar para atrasar, e aliviar, a possível posta em marcha destes novos regulamentos.
«O papel dos hedge funds é muito controverso. É um dos grandes fatores, mas não o único. Tanto a oferta como a procura estão muito ajustadas e isso provoca tensão no mercado», contemporizam da OCDE, recordando que há outras muitas questões que aumentam o preço dos alimentos. «Na minha opinião, os fundos de investimento acabam seguindo a tendência mais que a criá-la. Amplificam-na», sentenciam as mesmas fontes da organização.
UM SÓ FUNDO DE INVESTIMENTO COMPROU 7% DA PRODUÇÃO MUNDIAL NUM DIA
Um só hedge fund tem agarrados pelo pescoço desde há meses todos os produtores de chocolate do mundo. O fundo Armajaro, dirigido por um conhecido executivo britânico, Anthony Ward, apodado como "Chocfinger" (dedo de chocolate), comprou no passado mês de Julho tanto como 240.000 toneladas de cacau, o equivalente a 7% da produção mundial, numa só operação. A compra, que se fez no mercado Euronext, onde não há limites sobre este tipo de matéria, disparou o preço do cacau até aos seus máximos desde 1977. As milhares de toneladas de cacau continuam acumuladas, segundo confirmaram fontes cientes da operação a este jornal, nos armazéns de Hamburgo, Antuérpia e Amsterdão. Ward apostou no cacau, já que um dos seus principais produtores, a Costa de Marfim, está praticamente em guerra civil, com o que escasseará o produto em breve. Segundo o diário britânico The Daily Telegraph, George Soros investe neste fundo de investimento.
7 de Março de 2011
Original: Público.es

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